O Lento Alento, por Renato Essenfelder

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O Lento Alento, por Renato Essenfelder
Do ressentimento e da covardia moral

Do ressentimento e da covardia moral

Constelação de sentimentos ruins cresce alimentada por uma cultura de superficialidade e competição extrema; organizado e politizado, torna-se uma das armas mais destrutivas do nosso tempo

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Renato Essenfelder
jun 08, 2025
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O Lento Alento, por Renato Essenfelder
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Do ressentimento e da covardia moral
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Viva, caros amigos e amigas, como vão?

E lá se vão 60 publicações desta newsletter, iniciada em outubro de 2024. Nesses meses todos, compartilhei com vocês reflexões sobre literatura, cinema, filosofia e psicanálise — meus temas favoritos de estudo nas últimas duas décadas. Cada artigo enviado aqui eu encaro como a preparação de uma aula de pós-graduação (para quem não sabe, sou professor universitário, radicado em Portugal desde 2019). A ideia é passar do simples ao complexo, do banal ao extraordinário, de produzir espaços de respeito e respiro: devagar, mas esperançosamente. Lentos Alentos.

Aproveito esta introdução hoje para fazer um apelo honesto: se quiser e se puder, assine a versão paga desta newsletter. No plano anual, são apenas oito reais por mês (ou 1,40 euro, se você estiver em Portugal). É menos do que o copo de chope que eu gostaria de poder dividir com você, é menos do que um cafezinho gourmet.

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No último texto, falei sobre a praga do anti-intelectualismo. Falei sobre como vi crescer, nesta década, uma certa ignorância orgulhosa, que não apenas rejeita a cultura, tida como elitista e inútil, como também a quer destruir.

Eu dizia:

Pois bem, graças ao incentivo e comentário dos apoiadores da Newsletter, resolvi me aprofundar na questão, a partir de leituras de psicanálise e filosofia.

Vamos falar do mais importante, e perigoso, combustível desse anti-intelectualismo.


Em parte, minha vinda para Portugal em 2019 foi motivada pela ascensão do extremismo de direita no Brasil. Fugia momentaneamente daquele sentimento ignorante e doentio que furou os cordões sanitários do embaraço e da vergonha e começou a aparecer com mais e mais frequência, e orgulhosamente, na internet, no rádio, na televisão, nos jornais, nos almoços de família, até chegar na universidade e, para minha total decepção, nas salas de aula.

Emigrei para uma temporada de estudos inicialmente calculada para algo entre seis e doze meses. Pouco depois de chegar, contudo, veio a pandemia — e o resto é história. Vou ficando, vou tateando meu caminho.

Daqui, de longe, eu observava o que havia em comum entre amigos de infância, familiares, colegas de trabalho, alunos e celebridades seduzidos pelo discurso odiento e odioso dos extremistas. O que reunia toda aquela gente aparentemente tão diferente e tão dispersa pelo país?

Eis a minha suspeita: eram ressentidos.

O ressentido é movido pelo desejo de uma vingança que nunca será consumada — e assim sente-se moralmente superior

1. Todo mundo já sentiu inveja

Todo mundo já sentiu inveja, já foi passado para trás, já foi traído. Todo mundo já quis se vingar de alguém. Retiremos a solenidade e a graveza da palavra vingança, pois ela pode vestir muitos disfarces banais — não parabenizar aquele que nunca nos parabenizou, evitar curtir o post daquela amiga que está “feliz demais”, minimizar conquistas alheias com um comentário frio ou comedido.

Às vezes, é só um leve desdém disfarçado, alimentado por uma “invejinha boba”. Mas, noutras vezes, o mal evolui para um horrível vazio vingativo, que não se satisfaz com nada.

Todo mundo já sentiu inveja, todo mundo já quis se vingar de alguém, nos seus termos. Nem todo mundo, contudo, ressente. Para que o injustiçado se torne um ressentido, é preciso mais do que sofrimento. É preciso haver um certo tipo de fraqueza, de covardia moral.

A psicanalista Maria Rita Kehl define: “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”. E não a qualquer pessoa, mas a “um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar”.

Ou seja, o ressentido atribui ao outro (ou ao Outro, a sociedade, a cultura) a causa do seu sofrimento ao mesmo tempo em que se recusa a admitir que ele mesmo poderia ter agido de outra forma, no passado.

O ressentido é no mínimo corresponsável por sua dor, mas negará isso até o fim. E, enquanto isso ele re-sente, incessantemente, a sua humilhação.

É por isso que esse sentimento, nas palavras de Nietzsche, o grande pensador do tema, é uma espécie de “paixão dos fracos”. O ressentido é um vingativo que não se reconhece como tal. Ele não age, prefere remoer seus sentimentos mais baixos.

Ele envenena a própria consciência, apaixonado por sua dor.

Em termos psicanalíticos, é como se o impulso agressivo que o ressentido teve, na origem da sua mágoa, tivesse sido duramente reprimido e depois se voltasse contra o próprio sujeito magoado. Como se isso virasse uma farpa sempre ali, incômoda, e que só machuca a ele mesmo.



Ciúme (1895), óleo sobre tela de Edvard Munch

2. O ressentido é um covarde

Na ruminação do ressentido, vários afetos ruins (ou paixões tristes, como diria Spinoza) começam a fermentar. O filósofo Max Scheler se referia ao ressentimento como uma constelação afetiva composta por rancor, raiva, inveja, presunção, maldade, ciúmes, malícia e, sobretudo, desejo de vingança.

Eu acrescentaria ainda a covardia, que impede que algo seja feito dessas coisas todas, que adia a resolução e a revolta e, com isso, dá tempo para a fera crescer e dominar seu hospedeiro.

A covardia é um aspecto fundamental do ressentimento. Todos nós somos vítimas de agressão e injustiça, mas não nos tornaremos ressentidos na medida em que conseguirmos elaborar algum tipo de resposta a isso. Scheler dá um ótimo exemplo. Diz ele que uma fera capturada, que se esforça para morder o caçador, não está tentando se vingar. Ela está buscando a sua liberdade: quer se livrar do cativeiro.

Os animais, por mais que pensemos o contrário, não guardam ressentimento. Eles agem quando o instinto impulsiona o seu agir.

Na história do sujeito ressentido, a vingança nunca terá sido executada durante o insulto sofrido, no calor do ato. Como diz o ditado, é prato que se come frio. E, enquanto espera o prato esfriar, essa raiva silenciosa alimenta o desejo de vingança — que, assim, não cessa de existir.

Como observa Maria Rita Kehl, “no ressentimento, o tempo da vingança nunca chega”. O humilhado adia a sua vingança até que ela se converta em ressentimento. Por isso, o ressentido é um covarde: ele é incapaz de agir no momento e incapaz de agir até mesmo após o momento. É incapaz de se vingar de modo afirmativo e frontal. De gritar: estou aqui, e é isto que eu quero.

Nietzsche considera o ressentimento um atributo dos “escravos” — mas, claro, está usando o termo em sentido nietzscheano. Isto é, para ele, o escravo é aquele que não age, apenas reage. Em outras palavras, pauta a sua vida em função do Outro, oculta o seu desejo até mesmo de si próprio.

Isso não tem nada a ver com as pessoas que foram efetivamente escravizadas, ao longo da história. Os escravizados não eram necessariamente ressentidos, pois o ressentimento “tem mais a ver com a rendição voluntária do que com a derrota”, completa Kehl. Estar em uma posição de subjugação física, como um prisioneiro de guerra, não é o mesmo que se identificar subjetivamente com aquilo. A vingança adiada de alguém que organiza uma resistência não é a mesma do ressentimento.

Mesmo nos horrendos campos de concentração nazistas, Primo Levi relata o espanto com os prisioneiros que conseguiam manter sua dignidade. Ser forçado a beijar as botas sujas de um fascista não é sinônimo de “rendição voluntária” nem motivo de desonra. Vergonha deveria sentir aquele que livremente escolhe forçar um prisioneiro a beijar as suas botas. Ele é o verdadeiro humilhado — se não o percebe, é apenas porque está tomado pela sedução do horror, e com ele se identifica.

“Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”, diz a famosa frase atribuída a Malcom X. O oprimido jamais se tornará um ressentido, na medida em que se rebela, e sua rebelião não entra em contradição com a obediência que é forçado a demonstrar, enquanto cativo. Ainda que internamente, ele se insurge.

O ressentido é psicologicamente impotente para a insurgência.

Aceita, que dói menos. Mas sem, realmente, aceitar.


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