O anti-intelectualismo e o triunfo do ressentimento
Não é desinteresse, é um tipo de raiva, um ódio que move uma inversão de valores: quanto mais você leu, mais idiota você é. Quem sabe das coisas sou eu, que nem precisei de livro nenhum
No ano de 2081, nos Estados Unidos, todos finalmente são iguais. Não é mais apenas uma igualdade de direitos, mas uma igualdade que se quer absoluta. Ninguém é mais inteligente, bonito, forte ou talentoso do que ninguém. Para garantir isso, o governo impõe uma espécie de “ajuste à média”, os niveladores — dispositivos que limitam qualquer habilidade que se destaque.
Os inteligentes usam fones que emitem ruídos ensurdecedores a cada poucos segundos, para interromper qualquer pensamento um pouquinho mais complexo.
Os fortes têm de carregar sacos de chumbo espalhados pelo corpo, que os deixam sempre extenuados, enfraquecidos.
Os bonitos usam máscaras. Quanto mais bonitos são, mais medonhos serão os disfarces.
Qualquer violação à regra é passível de multas pesadas e detenção.
Esse é o enredo de Harrison Bergeron, um pequeno conto publicado por Kurt Vonnegut (1922-2007), o genial autor de Cama de Gato e Matadouro 5, lá pelos anos 1960.
Lembrei do trágico Harrison, nesta semana (esse é o nome do adolescente da história que é preso por ser muito bonito, forte e inteligente, mas não darei spoilers).
Explico. Quando leio esse conto, vejo uma parábola sobre o triunfo da mediocridade. Sob o pretexto de que o mundo seria mais nobre e justo se fôssemos todos iguais (o que, à partida, parece lindo), será construída uma sociedade de imbecis, ou melhor, de filisteus.
Pois bem, 2081 é aqui, e não no bom sentido. Há apenas alguns dias ouvi comentários ressentidos que atacavam as pessoas (nós, caros leitores, nós mesmos!) que insistem em estudar, em ler livros considerados “difíceis”. Chatíssimos, insuportáveis. Ah, o pecado de querer aprender coisas, de não sossegar: livros, filmes, peças, exposições, pra que tanta coisa?
A gente só precisa comer, dormir, trabalhar. No máximo da sofisticação, quem sabe, Netflix, paquera e academia. A gente precisa ganhar dinheiro. O que for além é um elitismo, um esnobismo — mimimi e perda de tempo ante as urgências da vida material.
Para reforçar o impulso de escrever este texto, ainda fui brindado por acaso com a deliciosa resenha de Adriano Scandolara sobre o último livro da Tati “Eu-Mesma” Bernardi, em que ele conta que a narradora abandona um mestrado e “em vez de admitir suas próprias limitações" ela culpa "o sistema: afinal, só um herdeiro poderia ter tempo para passar a tarde lendo Deleuze, e ela tem que sustentar a sua casa e dos seus pais, além de seus próprios luxos, dos quais não pode abrir mão, claro”.
Ao longo da vida, já ouvi muitos comentários desse calibre. Dando aula desde 2008, me acostumei a questionamentos como:
— Professor, pra que serve essa matéria?
Mas isso não me incomodava, pelo contrário. Eu achava esse tipo de questionamento saudável. Ele não só vinha de um lugar legítimo como também me dava a oportunidade de pensar-com, de dialogar sobre questões mais profundas.
Desde quando tudo na vida tem serventia?
Qual é o papel da universidade na nossa formação?
Quando e como a gente percebe os efeitos de um saber na nossa vida?
De onde vem a escala de valores que atribuímos às coisas?
(Falei sobre esse tema no meu artigo sobre educação e inteligência artificial.)
Pelo menos desde 2018, contudo, tenho visto crescer um tipo de questionamento torto, quase doentio, sobre a questão. Não é mais incerteza, mas sim uma provocação rancorosa, que brota por entre dentes cerrados, que exala um cheiro muito mau.
— Ninguém quer saber o que você leu.
Não é mais desinteresse, é um tipo de raiva, um ódio que move uma inversão de valores: quanto mais você leu, mais idiota você é. Quem sabe das coisas sou eu, que nem precisei de livro nenhum.
É um comportamento que me revira o estômago, me faz pensar imediatamente nessa extrema-direita orgulhosamente tosca que cresce em todo o mundo e que infelizmente parece ter um horizonte imenso de pastagem para invadir.
E assim vamos sendo empurrados, distraídos demais para perceber, para um tipo de nivelamento que se dá por baixo. O culto ao “bom senso” se torna o álibi perfeito para ridicularizar o pensamento crítico, minar a dúvida, criminalizar a imaginação.
Toda curiosidade vira vaidade, toda profundidade vira afetação e toda ambição intelectual vira arrogância.
É o triunfo do ressentimento.

Era essa palavra que o filósofo Friedrich Nietzsche usava: ressentimento. Impotente para criar, o ressentido vinga-se rebaixando os que ousam. O filisteu, em sua versão contemporânea, não quer saber de Deleuze nem do metafórico “filme iraniano em preto e branco”. Não quer saber da poesia concreta, do quarteto de cordas, da instalação silenciosa num galpão vazio de arte contemporânea, das engenhosas metáforas da MPB. Tudo isso o irrita, perturba, tira do eixo.
Não sabem como é bom, sair do eixo.
A filosofia não resolve nada, a política só tem bandido, a história só fala do que passou, o artista é inútil, o silêncio incomoda. Tudo o que exige algum esforço é chato, arrogante ou pretensioso. O filisteu pós-moderno não diz “não entendi, mas quero entender”. Ele diz: “isso aí é ruim mesmo, ninguém entende”.
E volta pro TikTok.
Nós voltamos a Vonnegut. O que são os “niveladores” daquele conto, senão os aparatos da vida moderna? Na história, ruídos constantes calavam qualquer pensamento — assim como hoje notificações, notícias sensacionalistas, timelines infinitas. Sacos de chumbo afundavam os ombros, como a esmagadora precarização do trabalho, a falta de tempo para o estudo e o lazer. Máscaras padronizavam rostos, como filtros de Instagram.
A isso, chamavam igualdade, chamavam justiça. A certa autora, o controle da diferença já não é uma imposição do governo, mas sim uma demanda da própria sociedade. Se a gente se livrasse dos niveladores, diz o pai de Harrison:
— Logo a gente estaria de volta à Idade das Trevas, com todo mundo competindo com todo mundo. Você não ia gostar disso, ia?
É especialmente triste como esse discurso se infiltra nas instituições que deveriam estar na linha de frente da resistência: escolas, universidades, imprensa. Não raro, quem ensina é constrangido a simplificar, agilizar, tornar “prático”. O professor vira animador. O aluno, consumidor.
Eu disse que Vonnegut descrevia uma utopia de imbecis, mas quero dizer: imbecilizados. Sob o peso dos niveladores, acostumam-se à ideia da mediocridade e nela se acomodam.
O imbecilizado é sempre um conservador: conservador da própria covardia. Nietzsche chamava isso de filisteísmo da cultura. Uma postura em que o sujeito se sente representante legítimo da grande tradição, embora não tenha capacidade de compreender realmente a tradição que ele diz representar.
Os novos filisteus, que odeiam a cultura e o estudo, dizem que não têm tempo para essas bobagens. Se tivessem todo o tempo do mundo, contudo, ainda assim não conseguiriam avançar nisso.
Não é tempo, o que lhes falta.
O filisteu é o oposto do artista, o oposto do verdadeiro criador, que busca, hesita, arrisca. O filisteu não cria, mas imita. Não sente, mas racionaliza (frequentemente, mal). Ele vive cercado de cultura, mas não a habita. Frequenta teatros como “programas culturais”, vai a concertos como quem vai à farmácia — e vai embora exatamente como chegou. Não nada por entender, não há o que sentir. É consumir e descartar, só pra dizer que consumiu e descartou.
E bradar: Sou melhor do que isso tudo.
É o triunfo, também, do lugar-comum, da obviedade prática.
Quando temos medo de parecer “intelectuais demais”, quando sentimos vergonha de dizer que gostamos de Bach, ou que um livro de filosofia mexeu conosco, ou que nos perdemos horas em uma exposição no museu, é o mundo inteiro que está em risco.
A renúncia dos filisteus à arte e seus prazeres difíceis é uma renúncia à própria vida, que, por fim, sabota tudo o que ela tem de melhor.
O que a vida tem de melhor, afinal, são justamente esses prazeres difíceis.
A eles, como Molly Bloom (por falar em prazeres difíceis), digamos Sim!
Não nos deixemos capturar pelo ressentimento anti-intelectual, pelo engodo que diminui a vida ao fingir valorizá-la.
É a eternidade que está em jogo!
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Renato Essenfelder é escritor, jornalista e professor universitário, com quase vinte anos de carreira docente na área de Comunicação no Brasil e em Portugal. PhD e pós-doutorado em Comunicação e Artes, suas áreas de especialidade compreendem a crítica da cultura, a cultura digital, jornalismo, cinema e a psicanálise.
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