Quando as calculadoras começaram a escrever
Os textos gerados por IA se multiplicam por aqui e por aí — que pena; na escrita matemática das máquinas há sempre algo de estranho e oco, sem sabor, como uma fruta de cera
Evoé, jovens artistas.
Nesta semana comentei, com os colegas aqui deste Substack, que me surpreende a quantidade de newsletters, às vezes literárias e até confessionais, surgidas nos últimos meses, escritas por Inteligência Artificial.
É uma coisa que me aborrece e, ao mesmo tempo, deprime.
Quer dizer, eu até entendo, sem ironia, quando meus alunos usam o chatGPT nos seus trabalhos acadêmicos. Os mais conscientes usam o recurso de modo crítico — os menos aplicados, limitam-se a copiar e colar.

Até entendo essa forma de trapaça, de apelação: é possível que esses alunos não vejam muito valor nas minhas aulas, que estejam ali apenas porque obrigados (por quem? pelos pais? pela sociedade? pela culpa? pelo tédio? essa é uma boa questão) e, portanto, não se vejam motivados a escrever nem mesmo 10 linhas de reflexão própria.
Aceito isso, como aceito a “cola” durante a prova. É parte do jogo. Se eu pegar o aluno no ato, puno conforme as regras acordadas. Se não pegar, paciência, não perco meu sono especulando sobre o logro alheio.
Afinal, saber colar na prova é uma habilidade, tanto quanto saber usar o chatGPT.
Entendo que, no fundo, o chatGPT é usado para trapaças contra eles próprios.
Tornam-se mestres e vítimas do autoengano, da autofraude, do autotrambique — nos dois sentidos que consigo pensar para o prefixo: auto como algo que se aplica a si próprio, reflexivamente, e auto como algo que se delega a uma máquina, que se automatiza.
Lembro também daquela máxima do povo do Direito: se não está nos autos, não está no mundo. Agora que o mundo inteiro está em modo auto, porém, tudo está nos autos, logo, tudo está no mundo. Nada mais pode ser deixado de fora, nada pode ser visto isoladamente, quando a gente investiga um problema realmente a sério.
Mas divago (as máquinas não divagam; ponto pra quem?).
Bem, o ponto é: vivemos um tempo em que até mesmo o autoengano, vejam só, foi automatizado. Vivemos o tempo em que confissões, essa coisa tão íntima, outrora reservadas aos parceiros, padres e psicanalistas, podem aparecer com cheiro de chatGPT. O que pensará o “autor” disso? Sou um gênio, sou uma fraude? Nenhum desses extremos, posso apostar. Talvez simplesmente não pense, porque não se ocupa de refletir por mais tempo do que o necessário para digitar um comando, copiar a resposta, e colar.
Imagino um mundo em que as pessoas realmente comecem a acreditar no que geradores de texto relatam — não sobre o mundo, mas sobre elas próprias.
Não é difícil imaginar isso.
Uma vez, no início do chatGPT, quando ele ainda não acessava a internet, perguntei quem era Renato Essenfelder. Cada resposta trazia uma história diferente sobre mim. A que mais gostei dizia que eu era um crítico de cultura que havia escrito livros como “Admirável Mundo Novo Burger”, uma crítica a redes de fast food.
Mais do que uma curiosidade egóica, que também era, eu fiz o exercício para mostrar aos meus alunos os riscos de usar um gerador de textos para fazer pesquisa, para obter informações fiáveis sobre o que quer que fosse. Escrever não é o mesmo que pesquisar. Gerar é diferente de criar.

Mas não quero soar tecnofóbico, o que não sou. Apenas quero investigar a minha própria angústia, como leitor e como escritor, nos tempos que correm.
E dizer: usem a tecnologia que quiserem, amigos criativos, autores e autoras, mas façam isso direito, por favor.
Não como um substituto da vossa inteligência, da vossa hesitação e loucura, da vossa potência — da vossa humanidade.
Para o aluno que copia+cola+dane-se, costumo dizer que o professor é apenas um obstáculo entre ele e o diploma. Eu sou o obstáculo, a pedra no meio do caminho.
Mas sem nenhuma poesia.
Se o chatGPT ajuda a superar esse eu-obstáculo, assim como o Waze ou o Google Maps ajudam a desviar de rotas congestionadas, ok, eu aceito isso. É o que usuários vão fazer. Usuários vão usar. É dessa forma que irão explorar a ferramenta, e por ela serão explorados, como e fossem também ferramentas — mais complexas e valiosas, embora nem sempre percebam isso.
Mas quando falamos de literatura, confissões, experiências humanas, tudo muda de figura.
Literatura é coisa séria. É mais do que um luxo, é um Direito Humano, nas palavras do imortal Antônio Cândido. Escrevi profundamente sobre essa questão em uma série de três textos longos aqui no Substack: Em busca de um definição para a literatura e para que serve a literatura (partes 1 e 2). Recomendo a leitura, se tiverem interesse em situar melhor essa discussão de textos artificiais e literários.
Isso me intrigou quando comecei a ver newsletters supostamente autorais (re)produzindo conteúdo (re)produzido de IA.
Perguntei-me: por que as pessoas fazem isso?
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