O Lento Alento, por Renato Essenfelder

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O Lento Alento, por Renato Essenfelder
O Lento Alento, por Renato Essenfelder
Para que serve a literatura (parte 1)

Para que serve a literatura (parte 1)

Aprendi que os livros encantam, mas também humanizam e ensinam a viver melhor

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Renato Essenfelder
out 19, 2024
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O Lento Alento, por Renato Essenfelder
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Para que serve a literatura (parte 1)
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Quando eu era criança, a minha mãe às vezes me levava com ela para o trabalho — como tantas outras mães divorciadas e pressionadas pela dupla, tripla jornada.

Eu estava naquela idade ainda jovem demais para ficar sozinho em casa, em total segurança, mas suficientemente grande para poder acompanhá-la sem causar grande transtorno.

Nas primeiras vezes, ficava na sala de empréstimo de jogos, fascinado com a quantidade de caixas de papelão coloridas de vários tamanhos, as peças de todos os formatos, os brinquedos completamente diferentes do que eu estava acostumado a ver — o jogo da operação, o jogo de martelar pedrinhas de gelo sem deixar que o ursinho de papel caísse.

Minha mãe era bibliotecária.


O prédio modernista da Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba

Para mim, a sala de jogos era um parque de diversões, onde eu podia passar o dia todo entretido.

Com o tempo, contudo, as maravilhas daquele canto meio escondido, no subsolo do prédio, foram perdendo o encanto. Eu não queria mais saber de salvar ursinhos de papelão, nem de mover pecinhas em tabuleiros multicoloridos. Começava a me interessar por outras explorações. Queria saber das selvas de Tarzan, dos enigmas de Sherlock Holmes, das aventuras de Asterix e Obelix.

E, sobretudo, queria saber de garotas, e dos mistérios dos casais. 


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Aos poucos, descobria um outro parque de diversões, infinito em todas as dimensões. Com ele fui aprendendo sem perceber, e percebendo que a literatura não era a coisa chata de que se queixavam alguns coleguinhas.

Sendo infinita, ela era o que a gente quisesse.

De Tarzan e Conan Doyle fui passando a Tolkien e Gabriel García Márquez, o primeiro autor de quem li a obra completa, até chegar em Edgar Allan Poe, Machado de Assis, Clarice Lispector e daí toda uma constelação que eu não conseguiria enumerar aqui. Ramificações e ramificações (jardim de caminhos que se bifurcam), dentro e fora de mim.

Eu aprendi muitas coisas com a literatura, além de me divertir imensamente, e talvez por isso a pergunta para que serve a literatura nem sequer me ocorresse, naquela época. Se surgia, era da boca de algum menino de escola a quem eu não prestava muita atenção, num tom de deboche, e portanto não chegava a me preocupar.


Acho que só depois que comecei a dar aulas, lá por 2008, fui confrontado mais seriamente com a questão. Uma das primeiras disciplinas que assumi na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, chamava-se Jornalismo Literário. Era uma introdução bastante ampla ao tema, começando por aspectos históricos e conceituais, passando pelos principais autores nas línguas portuguesa e inglesa e desembocando no que agora motiva a própria existência do projeto deste O Lento Alento: a construção de um repertório cultural variado e consistente, que nos permitisse ler melhor, escrever melhor, viver melhor.


Joseph Mitchell (1908-1996), um dos meus repórteres prediletos, cuja espetacular obra O Segredo de Joe Gould eu esmiuçava nas classes de Jornalismo Literário | foto: acervo Therese Mitchell

A partir daí, comecei a estudar o tema e a me ocupar de tentar perceber, de forma mais sistemática, para que serve a literatura.

Já era bastante óbvia, para mim e para os meus colegas professores, a diferença entre alunos com e sem hábitos de leitura. É claro que o hábito de leitura em si muitas vezes é um indicador de outras questões, materiais, afetivas e familiares, mas, a despeito disso, era possível notar, em alunos com diferentes perfis socioeconômicos, e histórias de vida variadas, o impacto que a literatura era capaz de produzir.

Produzia gente mais interessante, mais curiosa, mais sensível e empática, mais habilidosa no manejo das palavras — o que também se refletia em uma inteligência emocional muito mais apurada.

E, claro, era gente mais interessante.

As marcas da literatura eram visíveis.


Precisa servir para alguma coisa?

Mas quero começar pelo avesso dessa discussão, antes de avançar. Afinal, uma das coisas mais bonitas e preciosas da arte é sua possibilidade de existência para além da esfera utilitária.

A arte pode dar-se ao luxo de não servir — e, assim, paradoxalmente, servir para o que há de melhor em nós.

Lembro de uma deliciosa crônica do Rubem Alves (1933-2014) que começa com uma provocação. Convidado para fazer uma palestra em um asilo, o escritor começa assim:

— Então vocês chegaram àquela idade em que não servem mais para nada!

Na sequência, ele narra a indignação dos pobres velhinhos da plateia. De imediato, ficam contrariados e começam a enumerar razões pelas quais ainda são, sim, muito úteis.

— Mas eu ajudo meu filho com a minha aposentadoria.

— Mas eu faço voluntariado no hospital.

— Mas eu cuido dos netinhos quando meus filhos precisam.

A lista seguia adiante e adiante, interminável.

Rubem, que era famoso por sua personalidade irreverente, fez piada com a situação. Por que os velhinhos, tão velhinhos quanto ele mesmo àquela altura, aliás, ficavam tão preocupados com sua serventia? Por que se ofendiam por não serem úteis como uma vassoura em vez de inúteis e maravilhosos como uma pintura, uma escultura, um romance…

A plateia enfim relaxou.

Por que é tão importante ser útil? Útil para quem? 

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A magnífica pintura O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (1445-1510)

A função estética

O filósofo Immanuel Kant (1724-1804) escreveu sobre a função estética da arte (que podemos estender ao campo da literatura) séculos antes de Rubem Alves problematizar a obsessão utilitária dos seus leitores e ouvintes.

Para Kant, o prazer estético que uma obra provoca, a apreciação da forma e da linguagem, seria um fim em si mesmo.

Uma atividade cuja finalidade é não possuir finalidade.

Assim, a arte encarna uma experiência de beleza desinteressada (ou experiência desinteressada de beleza?) que não quer nada além de ser a coisa em si. (Jean-Paul Sartre [1905-1980] faria uma argumentação nessa linha, em meados do século 20.)

Theodor Adorno (1903-1969) partiu da argumentação kantiana para defender que a arte pura é uma negação ativa da lógica capitalista, pois resiste à mercantilização e à troca utilitária. A literatura, portanto, não seria apenas uma experiência estética, mas também uma afronta às normas que dominam a sociedade capitalista.

Seria mais ou menos como dizer que não servir para nada além do gozo estético, em uma sociedade obcecada pela produtividade e pela utilidade das coisas, é um disparate. O disparate da arte.

Mas esse disparate não é vazio. Considerando que toda obra de arte é necessariamente produzida em um contexto histórico-social, ela carrega algo dessa materialidade em si. Então, Adorno conclui que a arte moderna é uma “antítese social da sociedade”, uma “negação plena de conteúdo social”.

Quando eu era adolescente, a professora de português trouxe um poema de Cruz e Sousa (1861-1898), o simbolista conhecido como “Dante Negro”, para falar da figura de linguagem da aliteração — aquela que se baseia na repetição de letras, sílabas ou sons em uma mesma frase.

É um exempo bem clássico nas escolas brasileiras, e não é improvável que você já o tenha ouvido. O poema era Violões que choram…, de 1897, e em certa altura tinha uns versos assim:

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Eis um bom exemplo de uma função principalmente estética na composição. O poema se destaca pela ênfase na musicalidade, ritmo, aliteração e sonoridade das palavras, com o uso de repetições e consoantes suaves que evocam uma sensação de fluidez e melodia. O foco está mais na forma e na beleza das palavras e menos em um conteúdo social. A experiência estética que o poema proporciona, pela sua harmonia sonora, se alinha à ideia de que a arte pode existir “por si mesma”, sem um propósito utilitário imediato.

É um poema bonito, que sublinha uma sonoridade suave e sensível.

(Reparou que usei aliterações sibilantes?)

Também me ocorrem os versos sensuais e engenhosos do Chico Buarque em Joana Francesa:

Quem me enfeitiçou
O mar, marée, bateau
Tu as le parfum e
De la cachaça e de suor
Geme de preguiça e de calor
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda, accord

D'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda, acorda

Aí temos uma linguagem muito rica e evocativa, com jogos de palavras, imagens sensoriais e uma bela mistura de culturas e línguas. A construção poética, cheia de ritmo, desperta a nossa sensibilidade, sem necessariamente carregar intenções morais ou sociais. É uma experiência estética.

(Vale a pena ouvir e se deliciar com os jogos de palavra.)

Mas é claro que a literatura pode ser, além de bela, perigosa, tal e qual um filme de espionagem.

Cena de ANNA (2019), de Luc Besson, em que uma implacável espiã russa se disfarça de… supermodelo.

Ela pode denunciar a ordem social. Pode querer dinamitar as estruturas que aí estão, propor algo diferente, incitar-nos a subversivos sonhos de liberdade.


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