Lutar para não emburrecer
Parece contraditório, mas é matemático: à medida que a gente envelhece, os horizontes se estreitam; é preciso lutar e resistir ao piloto automático da vida
Não é um paradoxo?
À medida que a gente vive, pode muito bem estreitar horizontes, e não alargá-los. Eu diria até que essa é a ordem normal das coisas, na pós-modernidade hipercapitalista. A gente se enterra em trabalho, depois se encerra em casa, na falta de dinheiro, de laços sociais e solidários, de disposição ou tempo para provar o diferente, pra bater perna e estabelecer novas relações com o mundo.
Na crônica desta semana, falo da sensação de embrutecimento que eu tive, após alguns anos preso a uma rotina exaustiva de trabalho. Ainda que eu me dedicasse a uma atividade intelectual, o jornalismo, chegara ao ponto de conseguir prever o que os entrevistados diriam, e escrevia de forma mecânica.
Até a vida mais imprevisível, mais acelerada, pode ser tocada no piloto automático.
Eu embrutecia, eu maquiescia. A salvação, para mim, foi retomar os estudos, inserir pílulas de caos na rotina, tentar surpreender o deus-máquina para voltar a alargar horizontes.
Viver feito criança, olhar feito poeta.
Vencer a mediocridade
Há algo de emburrecedor na rotina; ou melhor, nos confortos da rotina. Era assim que me sentia após cinco anos numa redação de jornal, editando cadernos de negócios e carreiras.
Depois de determinado tempo (que hoje parece ter encurtado), qualquer profissional dedicado desenvolve o misterioso dom de prever o futuro banal, o amanhã trivial.
Cinco anos, talvez um pouco menos, foram suficientes para que eu já imaginasse o que as fontes diriam sobre determinados assuntos, quais seriam os vícios nos textos dos repórteres, quais seriam as reações de leitores, colegas e chefes.
Fui sensato o suficiente para observar que o sucesso era arauto do fracasso, que aquilo era a medida de meu declínio.
Mesmo em trabalhos essencialmente intelectuais, como o jornalismo, podemos, sim, emburrecer – ou melhor, maquinescer. Em qualquer função muito especializada, e elas se multiplicam no direito, na medicina, na engenharia, na economia, na vida moderna em geral, a tendência é estreitar horizontes com o tempo, e não alargá-los.
Não há sabedoria no envelhecimento, em si. Como disse o bobo ao Rei Lear, a verdadeira tragédia é ficar velho antes de ficar sábio. A sabedoria não é um direito adquirido dos velhos, é um privilégio.
Como tudo o mais, exige empenho, luta, sacrifício.
No trabalho, o emburrecimento que me incomodava era um fruto estranho do sucesso. À medida que conhecemos profundamente uma rotina, ela passa a nos envolver como um colchão aveludado, convidando ao desfalecimento.
A rotina: constelação de astros familiares em cujo centro gravita a mediocridade.
E a mediocridade, com sua força gravitacional esmagadora, atrai todos os seres vivos para o seu núcleo morno e apático.
Libertar-se disso demanda esforço constante. Diariamente, minuto a minuto, temos de permanecer alertas. Cada olhar baixo, cada cochilo, cada toque no controle remoto esconde um convite, uma passagem só de ida ao coração medíocre do mundo.
(Por isso escrevi, na semana passada, que ser hedonista de verdade é mui trabalhoso.)
Tentado pelo conforto da ignorância, fui salvo pelos estudos, e hoje tento disseminar o antídoto. Estudar, ler — ficção e teoria, teatro e poesia — gera empuxo suficiente para nos libertar.
Sempre há tempo, mesmo para quem se julga perdido.
Devaneio. Durante a aula, uma aluna levanta a mão:
- Mas gente medíocre não é mais feliz que gente inteligente?
Penso sem pressa. Se a resposta for sim, de que vale um Guimarães Rosa, onde guardo aquele Machado de Assis, em que estante juntarão pó Clarice, Raduan, Elizabeth Bishop e Dalton Trevisan?
– Pode ser, desde que você não tenha consciência da sua mediocridade.
Nesse caso, como ser feliz? Desde que você nunca tenha experimentado o gozo de ser mais do que medíocre, que não saiba, nem por um segundo, o que poderia alcançar, quem poderia ser, como pai, filho, marido, amante, amigo, profissional, intelectual, artista, cidadão. Quem se conforma se contenta com qualquer coisa.
Insisto, sutilmente. Tento mostrar que os prazeres vão se somando, à medida que nos dedicamos. As dores, também. O repertório, afinal, se multiplica em todas as direções, e aprendemos a nomear coisas que antes eram apenas isso, coisas.
Agora, o sublime, o indizível. O horror, o horror.
E o amor. A luta se trava abaixo das trincheiras, em minúsculos buracos de formiga, nas reentrâncias de uma folha de papel.
Só precisamos de um vislumbre.
Só precisamos saber que deve haver mais.