A fantástica Máquina de Distrações Infinitas
Vivemos um curioso hedonismo sem hedonistas, em que os prazeres são esvaziados em nome da conveniência, da distração e do vício
Viva!
O mundo está complicado, não está? A vida não anda difícil demais?
Pois bem. Imagine uma máquina. Uma máquina que promete algo absolutamente irresistível: felicidade plena. Uma espécie de Matrix que continuamente nos alimenta com experiências prazerosas, de tal modo que elas sejam indistinguíveis da realidade. Uma máquina que, para todos os efeitos, oferece experiências reais de prazer.
Essa é a premissa do experimento mental do filósofo Robert Nozick, apresentada em Anarchy, State, and Utopia (1974), livro que já completa 50 anos e se mantém atual.
A Máquina de Experiências de Nozick permite que você viva qualquer experiência desejada. Quer ganhar um Nobel? A Copa do Mundo? Ser um astro do rock? Atleta olímpico? Atleta sexual? Sentir-se plenamente amada? É pra já.
Tudo isso, ainda que simulado, seria tão real quanto uma topada na quina da mesa ou um coração partido. Bastaria conectar-se.
Conforme Nozick mesmo descreve:
Neuropsicólogos fora-de-série poderiam estimular-lhe o cérebro de modo que você pensasse e sentisse que estava escrevendo uma grande novela, fazendo um amigo ou lendo um livro interessante. Durante todo o tempo você estaria flutuando em um tanque com eletrodos ligados ao cérebro.
Deveria você conectar-se a essa máquina por toda a vida, programando as experiências que teria enquanto vivesse?
Você poderia selecionar e escolher em uma grande biblioteca ou repositório de tais experiências, decidindo-se pelas que quer, digamos, nos próximos dois anos. Depois de transcorridos dois anos, você teria dez minutos ou dez horas fora do tanque a fim de escolher as experiências dos dois anos seguintes. Claro, enquanto estiver no tanque, não saberá onde se encontra. Pensará que tudo aquilo está realmente acontecendo.
Antes de continuar a leitura, pare um segundo e me diga:
Por mais tentador que seja a proposta de Nozick, o autor logo a seguir conclui que não, a maior parte das pessoas não se conectaria à máquina. Pelo contrário, repudiaria aquilo (exatamente como fazem os heróis de Matrix).
Nozick pergunta:
Você se ligaria? O que mais pode nos importar, a não ser como a vida nos parece a partir da dimensão interna?
E responde:
O que nos importa, além de nossas experiências? Em primeiro lugar, queremos fazer certas coisas, e não apenas ter a experiência de fazê-las. (…) Queremos praticar as ações que queremos, a experiência de praticá-las ou de pensar que as praticamos.
Uma segunda razão para não nos conectarmos é que queremos ser de certa maneira, ser um dado tipo de pessoa. Uma pessoa flutuando num tanque é uma bolha indeterminada. Não há resposta à pergunta de como é uma pessoa que passou muito tempo no tanque. Será ela corajosa, bondosa, inteligente, espirituosa, amorosa? Não se trata meramente de ser difícil responder a isso. Não há maneira de ela poder ser. Conectar-se a uma máquina é uma espécie de suicídio.
Por que devemos nos preocupar apenas com a maneira como nosso tempo é preenchido, mas não com o que somos?
Viciados em telas
Corta para a minha humilde sala de aula, cinco décadas depois de Nozick publicar Anarchy, State, and Utopia.
Um dia, durante uma discussão sobre o livro Dez Argumentos para Você Deletar Agora suas Redes Sociais (2018), de Jaron Lanier, um engenheiro de computadores que ficou famoso por conta de um documentário na Netflix, convidei os alunos a verificarem quantas horas por dia eles passavam, em média, em redes como TikTok, Instagram, Facebook e Twitter (essa é quase sempre a ordem de preferência deles).
Poderia ainda incluir YouTube, What’s App e streamings diversos, mas quis simplificar.
Em Portugal, a média de tempo gasto em redes sociais é de 2 horas e 23 minutos (igual à média global), segundo dados de 2024 da We Are Social. No Brasil, terceiro lugar no ranking mundial de tempo gasto em redes sociais, o índice sobe para 3h37.
Meus privilegiados alunos, no entanto, responderam algo muito diferente. A média foi qualquer coisa entre 4 e 5 horas diárias. Nossa ilustre campeã descobriu que estava na casa das oito horas diárias de redes sociais.
Ficamos chocados. O que justificava aquilo? Nem a aluna sabia dizer. Era uma mistura de tédio, trabalho (era promoter de um bar), curiosidade… Mas ela mesma não sabia dizer.
Era difícil entender ou aceitar aquilo.
Estaria a aluna ligada a uma Máquina de Experiências?
200 por dia: é a média de vezes em que uma pessoa pega o seu smartphone.
2.600: é o número médio de toques diários no aparelho.
Fonte: Ericsson/DW, 2024
Nozick contra o hedonismo
Será que você respondeu que NÃO se ligaria à Máquina de Experiências?
Nozick aposta que a maioria das pessoas responderia com um sonoro não.
Assim, ele argumenta que os seres humanos se importam com algo além do prazer. A gente se importa, também, com o ser. Queremos ser alguém, sujeitos que só se constituem por meio da ação concreta na vida, das experiências efetivamente vividas.
O objetivo de Nozick era, com isso, refutar as filosofias hedonistas que colocam a felicidade como produto de experiências prazerosas.
NO DICIONÁRIO
Hedonismo, substantivo masculino
Na ética: cada uma das doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e fundamento da vida moral, embora se afastem no momento de explicitar o conteúdo e as características da plena fruição, assim como os meios para obtê-la.
1.1 ética no cirenaísmo, dedicação ao prazer dos sentidos, fundamento de todos os prazeres espirituais.
1.2 ética no epicurismo, busca de prazeres moderados, únicos que não terminam por conduzir a sofrimentos indesejados.
1.3 ética no utilitarismo, procura do prazer individual, que somente se plenifica por meio de sua extensão para o maior número possível de pessoas.
Para Nozick, a recusa (e até mesmo a repulsa) à Máquina de Experiências revela que valorizamos aspectos da vida que transcendem a mera experiência subjetiva de prazer. Valorizamos coisas como a autenticidade, a conexão com a realidade e a realização de projetos e aspirações no mundo real.
Desejamos que certas coisas realmente aconteçam em nossas vidas, e não apenas que tenhamos a ilusão de que estão acontecendo. Queremos escrever um livro, e passar por todo o processo agridoce da criação, e não apenas ter a sensação de já tê-lo feito; queremos nos apaixonar por alguém real, e não por uma simulação; queremos construir uma vida com significado no mundo, e não nos alienar em um paraíso artificial.
Desejamos construir uma identidade, deixar uma marca no mundo e vivenciar a realidade em sua plenitude, mesmo que isso implique em enfrentar desafios.
Com isso, Nozick, e inúmeros pensadores que vieram depois dele, consideraram que a defesa do hedonismo estava definitivamente superada.
De mansinho, o prazer como finalidade da vida foi saindo de moda.
Faz sentido, não?
Será?
Deu pau na Máquina
Em um artigo de refutação a Robert Nozick, o filósofo Matthew Silverstein revisita o experimento da Máquina de Experiências e argumenta que a recusa em se conectar a ela não desmente o hedonismo. Afinal, podemos ter múltiplos desejos, e o fato de desejarmos algo além do prazer não significa que o prazer deixe de ser essencial à felicidade.
Silverstein argumenta que Nozick não consegue estabelecer uma conexão sólida entre o que desejamos e o que é genuinamente valioso para o nosso bem-estar. A mera existência de desejos por coisas além do prazer não demonstra que essas coisas sejam intrinsecamente valiosas para a nossa felicidade.
Outros críticos lembram que a Máquina de Experiências ataca uma forma simplista de hedonismo, que reduz a vida boa à mera maximização de prazer. Mas existem outras versões, mais complexas, do hedonismo, incluindo noções como a satisfação de desejos bem-informados, das virtudes ou do florescimento humano (a eudaimonia de que falava Aristóteles).
Ou seja, a partir de uma perspectiva mais complexa de hedonismo, talvez nós não nos conectemos à Máquina não porque o prazer não seja o motor e a finalidade das nossas vidas, mas sim porque existem diferentes graus e tipos de prazeres.
Nós somos capazes de entender que alguns prazeres são nocivos ou simplesmente não valem a pena.
Comer até explodir
Quando eu era criança, ouvi em uma novela na TV uma coisa que habitou minhas fantasias por meses: quando a gente opera as amígdalas (que eu nem sabia o que eram), só pode comer sorvete durante a recuperação.
Fiquei fascinado com aquilo.
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