Em busca de uma definição para a literatura
Gosto da ideia de uma força capaz de nos tirar do piloto automático
Viva!
Hora do alento da semana.
Aliás,
Pensando aqui com meus botões caídos e camisas banguelas, acho que uma das propostas mais fundamentais aqui de O Lento Alento é a de construção de repertório, ou seja, começar a reunir e manejar um certo conjunto de instrumentos que nos permita, sem falsa modéstia, aproveitar melhor a vida.
O que prometo, portanto, é uma certa acumulação de saberes – sobre o cinema, a literatura, a filosofia, a vida – que no fim nos proporcionem algum prazer. É uma promessa de prazer sem pressa, Lento Alento, em oposição à loucura dopamínica das redes sociais.
Não é pouca coisa, não é mesmo?
Nesse sentido, eu pensei que uma boa forma de começar a nossa relação seria falar sobre a função da literatura. Afinal, para que servem Guimarães Rosa e Annie Ernaux? Clarice Lispector e Haruki Murakami? Ursula Le Guin e Marcel Proust? Para que ler os clássicos, e os contemporâneos, se eles não pagam os boletos, não põem comida na mesa, não espanam os cantinhos da casa, não lavam um mísero copo sujo?
Antes de avançar nessa conversa, porém, achei melhor começar pelo princípio.
Vamos aos fundamentos.
Todo mundo sabe o que é literatura (até ser questionado)
Sempre que encontro uma questão desse tipo, lembro de um texto de Santo Agostinho que eu distribuía aos meus alunos de Ética, no mestrado em Jornalismo da ESPM, nos idos de 2018.
Em certa passagem de suas Confissões (lá pelo ano 400 DC), Santo Agostinho escreve:
O que é, então, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quero explicá-lo a quem me pergunta, já não sei.
Todas essas questões que parecem fáceis, até serem feitas, frequentemente me remetem a essa antiga Confissão. Quero dizer, todo mundo sabe o que é literatura, até ser confrontado com a pergunta: o que é literatura?
Como estamos apurando nosso olhar para o mundo, vou me permitir citar algumas fontes, mas sem academicismo, sem excelentíssimo doutor, sem beca nem gravata. Começo pela turma do Formalismo Russo, em especial o Roman Jakobson (1896-1982), linguista extraordinário. O Jakobson é formalista porque propôs uma análise da literatura a partir da forma. Para ele, era a função poética da linguagem aquilo que caracterizaria a literatura. Uma “organização da mensagem”, ou seja, um certo modo de escrever, pouco importando o conteúdo expresso.
Jakobson e seus colegas formalistas russos acreditavam que era possível isolar e identificar, quase cientificamente, o que faz um texto ser literário. Para eles, a literatura era definida pela sua capacidade de “desautomatizar” a linguagem.
Confesso que gosto dessa ideia, no geral. O Lento Alento, nesse sentido, dialoga com a literatura: quer desautomatizar a nossa relação com a arte, com o humano e com a vida.
Em termos simples, enquanto a linguagem cotidiana tem a função de comunicação direta, denotativa (pense na frase “estou com fome”), a literária é imprevisível, anárquica, foge do comum. Ela brinca com sons, sentidos e formas, provoca, desvia o olhar do significado óbvio para algo mais além.
Essa estranheza, esse estranhamento, seria o principal fator diferenciador da literatura.
Compare o enunciado “estou com fome” com o que o genial Padre Vieira (1608-1697) registra em um de seus sermões:
A fome não pode faltar, porque nasce do pão; e o pão não pode sobejar, porque a mesma fome que dele nasce, o come.
Agora a compreensão não é tão automática, certo? Se você é um leitor em busca de lento alento, deve ter lido pelo menos duas vezes a frase acima. Eu li umas seis. Mesmo assim, parece que ela tem algo mais a dizer, não? Mesmo quando a gente se esforça para ler palavra a palavra, buscar as conexões entre cada ideia, ainda assim parece que a interpretação desse trechinho entra em um território meio misterioso, como se a névoa fosse aumentando à medida que entramos no discurso, e não diminuindo.
Como não temos pressa, vamos reler devagar. O enunciado está dividido em duas partes. A primeira é “A fome não pode faltar, porque nasce do pão”.
Como assim a fome nasce do pão? A fome não morre no pão? No uso cotidiano da língua, não diríamos algo como “comi um pão para matar a fome”? Como é que o venerável padre encontrou um pão que produz fome?
Seria um milagre às avessas?
Ou será que não estamos falando de estômagos vazios nem da mistura de farinha de trigo e água?
Na segunda parte, Vieira contrapõe: “e o pão não pode sobejar [abundar ou ser demasiado], porque a mesma fome que dele nasce, o come”.
Lendo atentamente, pareceu-me que Vieira está dizendo algo parecido com pão nunca é demais, pois ele mesmo produz uma fome que o come. Então quanto mais pão, mais fome, e quanto mais fome, menos pão.
O quê? Mas isso não faz sentido!
Agora estou completamente certo de que estamos em um registro literário, desautomatizado, porque essa leitura exigiu algum esforço, envolveu alguma camada de mistério, encenou uma espécie de jogo.
Não é o ultimato da Esfinge: Decifra-me ou te devoro.
É mais um alento: Decifra-me e te aprazo, te agrado, te deleito.
Vamos brincar, vamos, juntos, jogar.
Ler (boa) literatura é desafiador, mas também é lúdico e transformador. É bom demais. Um bom livro, um bom filme, um bom passeio por aí, flanando por cafés, museus, parques e praças, é um alento às vezes necessário.
O que eu entendo desse pequeno trecho do sermão? Pessoalmente, acho que Vieira está dizendo que nós, seres humanos, estamos sempre em busca de algo, e que, mesmo quando atingimos esse algo, outro desejo surge em seu lugar. Parece-me uma constatação mais existencial do que “sobrevivencial”. A fome e o pão seriam alegorias de desejo/carência e de uma satisfação sempre momentânea. Alcançamos o objeto de desejo e o consumimos, e esse mesmo objeto produzirá outros objetos, num ciclo eterno de busca e (in)satisfação.
*Isso me lembra das minhas leituras recentes de psicanálise, mas isso é assunto para outro(s) Alento(s).
Jakobson disse que a literatura é "violência organizada contra a fala comum". Perceba que metáfora preciosa. É uma forma de violentar a fala comum, pois a faz dizer o que "normalmente" ela não diria. Mas é violência organizada, ou seja, não é acidental. Imagina o trabalho que o Padre Vieira teve para chegar à perfeição daquelas míseras duas linhas de texto.
O Formalismo Russo perdeu força a partir de meados do século 20, mas isso não significa que não tenha deixado um legado profundo. Aliás, o formalismo pode ser considerado um dos grandes fundadores da crítica literária moderna. O conceito de estranhamento na literatura ainda é essencial. A pergunta “o faz com que um texto seja literário?” permanece relevante e em aberto até hoje. O formalismo foi base para a emergência de novas correntes teóricas, como o estruturalismo, que se consolidou como uma das principais abordagens da crítica literária moderna.
Em sala de aula, e mesmo nesta nossa comunidade, alguns princípios do formalismo são e serão úteis para ensinar a ler e a escrever melhor, pensando na escrita a partir de seus aspectos internos, como estrutura, estilo e ritmo.
OK, mas, se isso é o que ficou, que influenciou o que veio depois, o que exatamente veio depois? Como a visão atual da literatura difere da proposta formalista?
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