Zé do Caixão, mestre do horror brasileiro (Parte 1)
"Que me importa que seja Sexta-Feira dos santos ou do demônio! Hoje eu como carne, nem que seja carne de gente!"
Viva! Feliz Dia das Bruxas, amigos e amigas.
Hoje trago a história de como um sujeito pobre e autodidata virou um dos maiores nomes do cinema brasileiro, forjou um mito que entrou para o folclore nacional, aterrorizou multidões, tornou-se o artista mais perseguido pela censura dos anos de chumbo, virou motivo de piada, com inúmeras aparições em programas de televisão de gosto duvidoso, foi obrigado a dirigir filmes pornográficos para pagar as contas até finalmente encontrar a consagração internacional, recebendo elogios de cineastas como Roger Corman (pai dos filmes B norte-americanos), Roman Polanski, Darren Aronofsky e Tim Burton, que chegou a dizer que “os seus filmes ficaram na minha mente como se fossem pesadelos, mas bons pesadelos”.
São Paulo, 1964. Bastam alguns poucos minutos de tela para que o infame Zé do Caixão diga uma das frases mais marcantes do cinema brasileiro:
— Que me importa que seja Sexta-Feira dos santos ou do demônio!…
Hoje eu como carne, nem que seja carne de gente!
O discurso, entoado com gargalhadas de desprezo, até hoje soa provocativo.
Imagine em 1964, ano de início da Ditadura Militar no Brasil e também ano de À Meia-Noite Levarei sua Alma, película de estreia de um personagem que logo entraria para o folclore nacional.
Com o coveiro Zé do Caixão, José Mojica Marins, diretor autodidata e ator instintivo, criador da odienta criatura, tornou-se ícone cult e maldito do horror.
Um artista cuja identidade foi confundida com a de sua criatura, como um Doctor Frankenstein brasileiro.
Tenho alguma memória das aparições de Mojica na televisão, pelos anos 1990, quando eu era adolescente e ele era mais motivo de risos do que de calafrios.
Sua forma inculta de falar — errando plurais, trocando letras — aliada às imensas unhas naturais e à caracterização circense, com medalhão, capa e cartola, induziam a um estranhamento cômico.
Mojica, o cineasta, estava sempre vestido de Zé do Caixão, o coveiro sádico.
Nos programas de TV dos anos 1990, superiluminados, com auditórios lotados e apresentadores histriônicos, o clima era essencialmente burlesco, brincalhão.
Naquele cenário, Zé/Mojica, Mojica/Zé, eram apenas caricaturas que não assustariam nem a uma criança.
Levou anos para eu entender que o Zé precisava da sombras, precisava da escuridão, para se manifestar.
Quando enfim apaguei as luzes para assistir À Meia-Noite Levarei sua Alma (filme atualmente disponível no YouTube), entendi o medo e o horror. Conheci aquele pesadelo de que falava o Tim Burton.
Ainda hoje, é um filme assustador e repugnante, que deixa muitas produções multimilionárias contemporâneas no chinelo.
Um sonho apavorante
À Meia-Noite Levarei sua Alma foi o primeiro filme de Zé do Caixão, mas não de Mojica. O cineasta já havia produzido vários curtas experimentais, com colegas de escola, e estreado oficialmente como diretor com um faroeste, A Sina do Aventureiro (1958), que foi condenado pela Igreja Católica por exibir uma cena de nudez imperceptível — duas mulheres que se banham em uma cachoeira, vistas de muito longe, sem nenhuma parte pudenda reconhecível.
Chateado com as críticas, que levaram a um fracasso de bilheteria (naquela época, sem a bênção clerical o filme nem sequer entrava nas salas de cinema de cidades do interior), Mojica decidiu fazer um segundo filme, pura “água com açúcar”, segundo ele, em que os heróis eram padres que resgatavam crianças que fugiam de casa.
Nem assim ele encontrou o sucesso. Apesar dos padres próximos a Mojica apreciarem o filme, não gostaram o suficiente para indicá-lo. Um deles chegou a dizer para Mojica desistir de fazer filmes, e ingenuamente falou que ele poderia trabalhar como bilheteiro em uma sala de cinema, já que gostava tanto daquele ambiente.
Ele achou uma boa profissão, e eu falei: mas como? Vou ficar vendendo e vendo os filmes dos outros? E o padre: “É o caminho que Deus lhe deu”. E eu disse: Puta que o pariu!
Mojica voltou para casa indignado, depois daquela conversa. Não havia emplacado com o seu faroeste, não havia emplacado no drama religioso água com açúcar.
Um ano depois, segundo conta, ele teve um sonho misterioso e apavorante. No sonho, um coveiro arrastava Mojica para fora de sua casa e o levava ao cemitério, onde mostrava a ele sua própria lápide.
Mojica viu em sonho sua data de nascimento e, quando estava prestes a ver a data de sua morte, fechou os olhos, apavorado.
Despertou, suando e tremendo, muito assustado.
Acabara de encontrar o tema de seu próximo filme.
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