Uma flor de obsessão: a vida trágica de Nelson Rodrigues
Antes de se tornar um dos maiores dramaturgos da história, ele viu a morte de perto e até passou fome; este artigo inaugura a série Páginas Tropicais, sobre grandes narradores do Brasil
Viva!
Querida leitora, caro leitor, trago novidades.
Este é o primeiro texto da nossa nova série Páginas Tropicais, em que falarei sobre alguns dos principais narradores do Brasil. É uma série exclusiva para assinantes pagos, que estará aberta por tempo limitado. E lembro que a assinatura anual custa menos de um café ao mês, irrisórios 7 reais que, para o meu trabalho, fazem toda a diferença.
Se você já sentiu que a rotina digital e as exigências do dia a dia estão sugando a sua criatividade, tornando a sua vida monótona e previsível, esta comunidade é pra você. Sério. Eu sei como é isso. “O Lento Alento” é minha resposta à tremenda desconexão emocional e cultural que os algoritmos parecem empurrar em nossa direção.
Um veneno antimonotonia, um tratamento, de afago, contra a apatia.
Ofereço reflexões, histórias e ideias para ajudar você a sair do piloto automático, cultivando sensibilidade, empatia e um olhar mais profundo para o mundo.
Vamos tornar as nossas vidas mais interessantes e ricas?
Páginas Tropicais #1: O Anjo Pornográfico
Um menino espiou o Brasil pelo buraco da fechadura.
Testemunhou, em primeira mão — ou pela sua imaginação —, o que acontecia nos quartos fechados da nossa classe média. Não só o desejo sexual reprimido e a infidelidade, mas também a ganância, a violência, a maldade, a deslealdade, o incesto e até a pedofilia. Tudo: sem ressalvas, sem concessões.
Mostrou que, na calada da noite, o santo peca, o pecador (quase) se redime. Abraçou o ser humano em suas contradições, a mesquinhez e a capacidade de realizar grandes feitos.
Ainda que tenha sempre algo de pulha. Canalha!
Nelson Rodrigues espiou, a vida inteira, por entre as frestas. Atento e pronto para o deboche.
O adulto não existe. O homem é um menino perene, frase do próprio Nelson, sintetiza uma ideia que parece perpassar sua vida e obra. Na crônica Uma Paisagem sem Ingleses, por exemplo, ele articula melhor o pensamento:
Sempre digo que o adulto não existe; o homem ainda não conseguiu ser adulto, ou melhor: — o que há de adulto, no homem, é uma pose. O que vale mesmo é o menino que está enterrado em nossas entranhas.
(Se me permitem, eu diria que o homem jamais será um adulto.)
Ser eterno menino, contudo, não significa ser eternamente bom e ingênuo. Pelo contrário. As crianças são crueis — e a nossa hipocrisia consiste exatamente em tentar mascarar isso. Fingir que não queremos o que queremos. E, quase sempre, a qualquer custo.
Quando o trágico enfim acontecia, no coração da pacata e ordeira família brasileira, o menino estava lá para espiar.
Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.
Primeiro, um aviso
Dividi este meu ensaio sobre o Nelson em duas partes.
A primeira, biográfica; a segunda, centrada em sua vasta obra.
Em geral eu não sinto tanta necessidade de me aprofundar na vida pessoal dos escritores que amo. Tento me interessar mais pelo “dito” do que pelo “quis dizer”, à luz de acontecimentos que possam ter marcado esses autores.
No entanto, a vida de Nelson Rodrigues foi uma sucessão de tragédias que aparecem diretamente refletidas nos seus textos, que costumavam misturar fato e ficção de forma brilhante.
Reacionário na política, Nelson foi genial e revolucionário nas artes. O que ele fez com Vestido de Noiva e com o teatro brasileiro ainda hoje é espantoso. Se escrevesse em inglês, alemão ou francês, não tenho dúvidas de que estaria entre os maiores de todos os tempos, ombreando com Shakespeare, pela profundidade das tragédias humanas; com Ibsen, por escancarar as hipocrisias burguesas; com Brecht, por sua capacidade de provocar o público e confrontar estruturas sociais.
“Estaria entre os maiores”? Não. Corrijo-me: ele está. Se os gringos não leem Nelson, perdem os gringos. Provocador, controverso, irritante até, Nelson Rodrigues é um gigante do teatro mundial.
Parte 1 - A vida como ela é
A trajetória pessoal e familiar de Nelson é daquelas que, quando transposta para a TV, faz a gente dizer: — Essas coisas só acontecem em novela mesmo. Que absurdo!
Nelson nasceu no Recife em 1912. Foi o quinto de nada menos do que quatorze irmãos, seis nascidos no Recife e oito no Rio.
Seu pai, Mário Rodrigues, ex-deputado estadual e talentoso jornalista, com o tempo angariou muitos desafetos políticos e, quando a coisa esquentou demais, foi instado pela esposa, Maria Esther, a mudar-se para a então capital federal, onde estava a nata da intelectualidade brasileira.
Nelson chegou ao Rio com 4 anos, em 1916. Aos 13, convenceu o seu pai a empregá-lo como repórter policial no jornal da família, A Manhã.
Conforme descreve Ruy Castro na biografia O Anjo Pornográfico, Nelson “tinha treze anos e meio, era alto para sua idade, magro e com cabelos indomáveis, que lhe caíam em cachos sobre a testa. Precisou comprar calças compridas para impor respeito aos colegas, embora fosse filho do patrão”.
A seção policial era prestigiada. Seus repórteres, embora mal pagos, verdadeiras estrelas. O próprio Nelson reconheceria, anos depois, que “com um ano de métier o repórter de polícia adquiria uma experiência de Balzac”.
Havia poucos crimes no Rio naqueles tempos, exceto os que envolviam paixão ou vingança. Prato cheio para o futuro dramaturgo.
Maridos matavam mulheres por uma simples suspeita, sogras envenenavam genros porque estes não lhes tinham dado bom dia aquela manhã e casais de namorados faziam pactos de morte como se estivessem marcando um encontro no “Ponto Chic”, escreve Ruy Castro.
Nelson especializou-se em relatar pactos de morte entre jovens namorados, uma verdadeira epidemia nos anos 1920. O motivo era sempre o mesmo: a desaprovação da família dos amantes. Não obstante, Nelson transformava cada caso em um épico, às vezes desenrolado ao longo de vários artigos, “fabricando ingênuas subtramas sobre o caso, com cenas de amor fremente, beijos arrebatados e de uma volúpia sexual que ele conhecia intimamente do cinema ou dos folhetins, mas nunca experimentara ao vivo”.
Ainda. A sua iniciação sexual seria aos 14 anos, com prostitutas, como era então comum, e ele passou a frequentá-las regularmente — experiência que aparecerá mais tarde em inúmeras crônicas e peças de teatro. Suas tentativas ingênuas e românticas de converter a uma “vida normal” as primeiras profissionais que conheceu só as fizeram rir, conta Ruy Castro.
Passou a praticar, e a condenar ferozmente, o sexo sem amor.
Um assassinato
Quando Nelson tinha apenas 17 anos e trabalhava em um novo jornal da família (o primeiro, o pai perdera para um sócio), intitulado Crítica, viveu um dos piores momentos de sua vida.
Seu irmão Roberto Rodrigues, artista plástico e ilustrador brilhante, promessa da família, foi assassinado com um tiro em 1929, em plena Redação.
Nelson escreveria mais tarde o seguinte sobre o irmão, em suas memórias:
Meu irmão Roberto foi o único gênio que conheci na minha vida. Era um artista de cinema, um galã daqueles tremendos, deflorador terrível. Ele aliás era tentado, seduzido pelas mulheres. Entrava numa casa de família e todo mundo se apaixonava por ele. Se havia duas irmãs, eram as duas irmãs. Um negócio tremendo. E, ainda por cima, era um sujeito denso, tinha um negócio assim trágico, fatal, aquela certeza de que ia morrer cedo. Em todas as suas ilustrações, os enforcados, os assassinados, tinham a sua cara.
O crime deu-se por motivo fútil, em defesa da honra, mas Roberto nada teve a ver com isso.
Na tarde fatídica, uma jovem chamada Sylvia Seraphim irrompeu jornal adentro à procura do pai de Nelson, Mário Rodrigues. A mulher chamou a atenção dos poucos jornalistas presentes àquela hora. Linda e loira, bem maquiada e perfumada, estava fora de si porque o jornal publicara fofocas que diziam respeito a um caso extra-conjugal que tivera e que motivara seu desquite — um tabu para a época.
A história fora relatada com riqueza de detalhes sórdidos, e, embora não tivesse sido escrita por ninguém da família Rodrigues, saíra no jornal sem assinatura do responsável. Ou seja, a conta recairia principalmente sobre o diretor da publicação.
Sylvia entrou no prédio do Crítica e foi direto à sala da direção, decidida a matar Mário Rodrigues. Não havia ninguem ali. Na volta, ela cruzou casualmente com Roberto, e, ao perceber que estava diante do filho do diretor, pediu para lhe falar em particular.
Roberto, muito educado, levou-a àquela mesma sala vazia para conversar e acalmar a mulher.
Nesse mesmo exato instante, o jovem Nelson Rodrigues deixava a Redação para ir tomar um café nas redondezas.
Voltou correndo ao ouvir o estampido do revólver.
Sylvia havia disparado um único e fatal tiro contra o abdome de Roberto.
Detida, não resistiu. Disse apenas:
Podem me largar. Eu não faço mais nada. Queria matar o doutor Mário Rodrigues ou o seu filho. Estou satisfeita.
A morte de Roberto, aos 23 anos de idade, foi um evento traumático para toda a família, mas muito especialmente para o pai.
Mário Rodrigues morreu 67 dias depois da morte de Roberto, vítima de uma trombose cerebral atribuída ao estresse. Não cansava de repetir: aquela bala era para mim, aquela bala era para mim. E era.
O pai tinha apenas 44 anos quando partiu, e sua morte deixou a família em uma situação financeira tão precária que os filhos passaram a se revezar em refeições. Nelson usaria sempre o mesmo paletó, ganhando a alcunha de “filósofo”, no novo emprego em O Globo por causa da aparência desleixada. Não usava meias, pois não tinha dinheiro para comprá-las.
Para agravar a situação, o jornal do falecido pai, o Crítica, foi interditado e encerrado após o golpe de estado que levou Getúlio Vargas ao poder, em 1930.
Sobre o período de tenebrosa pobreza, Ruy Castro relata:
A partir de 1931, os Rodrigues começariam a pular de casa em casa — cada qual menor, mais pobre e com mais percevejos. Nos nove anos seguintes, eles iriam ter sucessivamente sete endereços. (…) À medida que iam sendo despejados por atraso no aluguel, o proprietário que os despejava (mas gostava deles) dava-lhes uma carta de recomendação que logo lhes permitia alugar outra nas proximidades.
O menino Sérgio, filho de Roberto Rodrigues, não entendia como, ao visitar sua avó paterna no Natal, era levado todo ano a uma casa diferente — mais velha e mais sombria que a anterior, em vilas sem calçamento ou em cima de armazéns ou botequins.
As tragédias haviam apenas começado. Fragilizado pela fome e pela má nutrição por pelo menos três anos, desde a morte do pai, Nelson tornou-se mais vulnerável ao bacilo da tuberculose. Em 1934, aos 21 anos, manifestou a doença pela primeira vez. Na época, ela era considerada tão terrível que os jornais a chamavam de morte branca, em razão da extrema palidez que a doença provocava, e os diagnosticados muitas vezes preferiam se matar de uma vez, ingerindo veneno.
Antes de ser diagnosticado, aliás, Nelson submeteu-se a um tratamento bárbaro que era comum na época para combater febres persistentes sem causa identificada: teve todos os seus dentes, saudáveis e perfeitos, extraídos.
Sem resultado algum. A febre, na verdade um sintoma da tuberculose, persistiu.
A saúde de Nelson estava muito frágil, e ele teria de passar muitos anos entre a sua casa, o jornal e internações em sanatórios pestilentos, onde tuberculosos morriam como moscas.
Os caixões eram removidos do hospital na calada da noite, para não deprimir ainda mais os pacientes
Um desabamento
Depois de Roberto e Mário, o pai, foi a vez de Joffre Rodrigues, irmão de Nelson, morrer justamente de tuberculose, em 1936. Nelson se sentiu culpado pela morte de Joffre, acreditando ter sido o responsável por lhe transmitir a doença.
Décadas depois, outra tragédia marcante. Em 1967, Paulinho Rodrigues, também irmão de Nelson, morreu junto com sua esposa e filhos no desabamento do prédio onde morava, nas Laranjeiras, Rio de Janeiro. O evento vitimou 30 pessoas só no prédio de Paulinho, e quase 500 perderam a vida com a descomunal enchente que assolou a cidade.
Naquela mesma noite, Nelson apareceu na TV, calmamente apresentando um programa de entrevistas, o que motivou críticas generalizadas a ele, taxado de frio e desumano. Que tipo de irmão é esse que não se comove com o soterramento de toda uma família?
Mas a participação de Nelson havia sido gravada uma semana antes da tragédia.
Saída da pobreza
Ao menos profissionalmente as coisas iam melhorando, graças, principalmente, a Mário Filho, que fazia carreira de sucesso no jornalismo esportivo. Após destacar-se em O Globo, ele recebeu a proposta de se tornar proprietário do recém-lançado Jornal dos Sports, em 1936, sem precisar investir um tostão — os sócios minoritários emprestariam-lhe dinheiro, tão confiantes que estavam que seria Mário a peça fundamental para fazer da empreitada um sucesso. Estavam certos.
O imenso sucesso de Mário resgatou a família da lama. Para se ter uma ideia da importância dele, e do seu papel crucial na popularização do futebol no país, após sua morte, em 1966, o Estádio Municipal do Maracanã ganhou o nome de Estádio Jornalista Mário Filho.
Já Nelson ainda não conseguira emplacar um grande sucesso literário ou dramatúrgico que lhe rendesse efetivamente algum dinheiro.
Mas ele logo viria, e de forma arrebatadora.
O reacionário e o (filho) revolucionário
Politicamente, Nelson se designava um reacionário.
Mas ele falava nisso com tanto insistência que é o caso de desconfiar.
Uma de suas crônicas começa assim:
Toda vez que estou na televisão, arrumo um jeito de encaixar a seguinte e pomposa declaração: “Eu sou um reacionário.” O único insulto, o único palavrão de nossa época é esta palavra, reacionário.
Colega de Nelson, o jornalista Hermano Alves costumava dizer que “o Nelson Rodrigues político é uma caricatura do Nelson Rodrigues real”. Contrapunha, assim, a persona pública de Nelson, marcada pelo reacionarismo quase histriônico, à sua personalidade real, mais complexa e menos radical.
Nelson, assim como a sua obra, era paradoxal. Escrevia com tanta verve e potência que era fácil assumir que tudo aquilo despejado ali, no papel, era real. Mas suas crônicas não refletiam necessariamente suas convicções mais profundas.
Tenho a impressão de que ele encaixaria bem naquela máxima: perco o amigo mas não perco a piada. Era um sujeito cheio de humor, e testava os amigos até o limite da paciência, incorporando o papel de polemista radical.
Sou um ouvinte maravilhoso.
Escuto o que me dizem com paciência e amor.
Desculpem. Amor, não: humor. (Nelson Rodrigues)
Em outra passagem, Nelson complementa:
Não sou realmente um reacionário, mas um retrógrado. Sou um obsoleto, um carcomido, porque coloco a questão da liberdade antes do problema do pão. Num momento em que a liberdade é um fato de suma importância, em que um homem revela mais do que nunca a sua vocação de escravo.
A nossa época inaugurou um tipo novo de escravo, este escravo que o nosso tempo descobriu e fabricou, feliz e eufórico, que dá a vida para ser realmente escravo, para não pensar. O sujeito paga para não pensar, morre para não pensar no capitalismo.
Nelson era profundamente anticomunista, ou assim dizia ser, mas isso não quer dizer que não olhasse com desprezo para a imbecilização consumista que se espalhava pelo Brasil, com o avanço da industrialização.
Ele teve uma relação contraditória com o golpe militar de 1964 e com a ditadura que se seguiu. Inicialmente apoiou o golpe, sobretudo pelo sentimento anticomunista.
Além disso, não é de surpreender que Nelson nutrisse uma admiração por líderes fortes. Era atraído por figuras autoritárias e via em sujeitos como Getúlio Vargas e, posteriormente, em militares como o ignóbil Médici, a força e a capacidade de liderança que considerava necessárias para o país.
Contudo, um aspecto específico da biografia de Nelson fez com que a ficha enfim lhe caísse e ele passasse a repudiar a ditadura.
Em 1972, seu filho Nelsinho (Nelson teria seis filhos, de três mulheres) foi preso por envolvimento em atividades políticas contra a ditadura.
De início, o dramaturgo se recusava a acreditar que houvesse tortura nas prisões militares — que, para ele, eram sobretudo soldados disciplinados combatentes anticomunistas. Mas ele mudou de ideia, enfim, depois de um episódio em que ouviu isso da boca do próprio filho.
Ruy Castro narra o episódio amargo em que Nelson visita Nelsinho em uma das várias prisões pelas quais o filho passou.
[Nelsinho] já estava no Batalhão de Guardas. Nelson, Elza e Joffre tiveram autorização para vê-lo. Parecia bem. Mas Nelson perguntou-lhe na frente de um oficial:
“Você foi torturado?”
E Nelsinho:
“Muito.”
O rosto de Nelson se desfez, como uma máscara de teatro que tivesse sido deixada na chuva. Envelheceu anos naquele e nos minutos seguintes. Algo em que vinha acreditando durante todo aquele tempo se esboroava na palavra de seu filho — e, como se isso não bastasse, Joffre lhe contaria depois que vira o tornozelo de Nelsinho, com o branco do osso à mostra.
A partir daí, ele passou a usar a sua influência para tentar libertar o filho e outros “subversivos” e a criticar o regime de forma mais aberta. Chegou até mesmo a escrever carta ao general Médici, outrora admirado por sua força.
Com a recusa oficial em libertar seu filho, Nelson passou a se engajar na campanha pela anistia ampla e irrestrita aos presos políticos.
Em 1974, Nelsinho recebeu a liberdade condicional.
Viajar é uma experiência burra
Desde que se mudou para o Rio, aos 4 anos de idade, Nelson nunca mais deixou a cidade. Teimoso, dizia que “viajar é a mais empobrecedora e burra das experiências humanas”. Também escreveu que era homem de uma rua só, e que estava condenado a viver com sua língua e sua pátria, somente.
Viveria na Cidade Maravilhosa até a sua morte.
Nunca viajo porque a partir do Méier sinto saudade do Brasil.
Quer dizer, uma pessoa até pode viajar, segundo a filosofia Rodrigueana, mas, nesse caso, só se for como ele mesmo fez: tem que mudar para a nova cidade e viver nela por pelo menos uns 1.500 olhares.
O homem deveria ter nascido no paraíso, o mundo evidentemente não é a casa do homem. Por isto mesmo é que o sujeito precisa ser muito mais fiel à sua paisagem. Por isto é que eu digo que viagem não adianta. Não adianta nada você passar 48 horas em Paris, como o Otto passou agora. É como se você passasse pela Ava Gardner e dissesse “Boa noite, minha senhora”, e saísse crente que a tivesse possuído.
Isto é exato: o sujeito passa por Paris, dá boa noite a Paris, isto não significou nada no sentido de enriquecimento pessoal, isto é zero. Só se você fizesse o que eu fiz de Pernambuco para o Rio, e começasse a morar em Paris. Então Paris começaria a existir para você e você para Paris. Porque paisagem é hábito visual, só começa a existir depois de 1.500 olhares. Depois de uma convivência visual entre você e ela, então Paris passaria a existir.
Incontáveis olhares depois, por todos os recantos da paisagem carioca, Nelson Rodrigues morreu em 1980, aos 68 anos, de trombose e insuficiência cardíaca, respiratória e circulatória.
Escreveu ao todo 17 peças de teatro, incluindo a revolucionária Vestido de Noiva, considerada marco inicial do moderno teatro brasileiro. Também foi autor de incontáveis crônicas, contos, alguns romances e folhetins.
Existiu para o Brasil, e o Brasil existiu para ele — ainda que restrito à sua rua.
Post Scriptum
Peço desculpas pela longa introdução biográfica, mas realmente acredito que este passeio pela vida de Nelson foi importante para que a gente entenda melhor o que ele escreveu, por que escreveu, e por que ficou famoso por narrar “A Vida como Ela É”.
Acho que essas informações também ajudam a entender as raízes que estão por trás de suas obsessões literárias. Nelson era assumidamente um obsessivo. Adotou prontamente o apelido que lhe deram, de “flor de obsessão”.
Que seria de mim sem as minhas repetições?
A vida de Nelson está em suas páginas. A experiência de perda, e da pobreza, a tuberculose, que o assombrou por quinze anos, e a presença constante da morte.
Nelson é um daqueles casos em que é perfeitamente possível ler e maravilhar-se com a obra isoladamente, mas que, com o contexto todo de sua vida, intensa como de poucos artistas brasileiros, ganha tintas ainda mais fortes.
No posfácio de Vestido de Noiva, Flávio Aguiar resume bem essa amálgama entre vida e arte: “Todas as peças de Nelson Rodrigues parecem emergir de um mesmo núcleo, onde se misturam os temas da virgindade, do ciúme, do incesto, do impulso à traição, do nascimento, da morte, da insegurança em tempo de transformação, da fraqueza e da canalhice humanas, tudo situado num clima sempre farsesco, porque a paisagem é a de um tempo desprovido de grandes paixões que não sejam a da posse e da ascensão social e em que a busca de todos é, de certa forma, a venalidade ou o preço de todos os sentimentos”.
Nelson: uma das minhas grandes paixões literárias juvenis.
Ansiosa pela próxima parte!