Um tarado, um puritano: temas e conflitos do teatro de Nelson Rodrigues
Um guia para entender as peças e o pensamento do maior dramaturgo brasileiro, considerado ao mesmo tempo um reacionário e um revolucionário
Meu primeiro contato com a obra de Nelson Rodrigues foi nos palcos. Tive a sorte de cair casualmente em uma apresentação de Dorotéia, uma de suas peças menos conhecidas, durante o hoje famoso Festival de Teatro de Curitiba.
Eu devia ter uns 17 ou 18 anos de idade, e, na falta ou na preguiça de boas companhias, tinha o hábito de fazer esses programas (cinema, teatro, balé, orquestra) sozinho.
Era difícil arranjar ingressos para as peças mais disputadas, mas, como Dorotéia era pouco conhecida (apesar do apelo do nome Nelson Rodrigues na programação), consegui uma poltrona razoavelmente boa no enorme Teatro Guaíra, que nem chegou a lotar, no dia.
As luzes apagaram e gradualmente fui sentindo aquela excitação indescritível que acompanha a descoberta de algo grande, algo realmente especial. A sensação de um eco, de um som que ressoa, que bate na gente e amplifica qualquer coisa ainda sem nome. A sensação de um primeiro amor.
Virei, instantaneamente, fã de Nelson Falcão Rodrigues.
Dorotéia é a sexta peça escrita por Nelson. Não vou fingir que entendi tudo o que vi — aliás, nem metade devo ter entendido. Na época jovem orgulhoso, talvez eu me envergonhasse de admitir minha ignorância, mas, hoje em dia, não tenho tal pretensão. Já aceitei que não entender é entender de outra forma; ou, talvez, apenas sentir. Eu senti a peça. Saí confuso, meio abalado.
Não é maneira de dizer. Dorotéia é uma peça muito louca.
A trama corre assim: Dorotéia é uma lindíssima prostituta que decide mudar de vida após a morte de seu filho. Ela então retorna para a casa da família, onde vivem suas três primas solteironas e horrendas.
A feiúra é, para aquelas mulheres, uma espécie de virtude, o escudo que as protegerá do desejo.
Mas então as coisas vão ficando progressivamente estranhas. Logo somos informados de que as mulheres da família de Dorotéia são amaldiçoadas (ou abençoadas?) com a náusea, uma espécie de entorpecimento dos sentidos que as impede de enxergar qualquer homem. Não só isso, mesmo que se casassem com homens (que não poderiam ver), esses maridos, na noite de núpcias, desapareciam também fisicamente; desintegravam-se.
A origem da náusea é atribuída a uma bisavó que casou com um homem que não amava. Na noite de núpcias, ele virou pó, e ela nunca mais enxergou homem algum.
A peça explora o desejo feminino reprimido e condena o casamento sem amor. É moralista, mas não exatamente de uma moral hipócrita convencional. Um casamento realizado sem amor, como o da bisavó, é uma traição pior do que qualquer traição, Nelson enfatiza. Dessa negação do amor só poderiam decorrer desgraças.
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