Trump, terror, terror
O terror é político, e, na Era Trump, a política é o terror; os filmes ensinam que o monstro rejeitado não desaparece — assim como o fascismo, persiste nas margens, esperando o momento de atacar
Minha mulher tem medo sobretudo de “filme de espírito”.
Ela faz uma distinção muito específica entre os filmes de possessão demoníaca (tipo O Exorcista, que amou) e filmes de assombração por espíritos malignos. Se a história é só com demônios, tudo bem, ela encara. Se for uma coisa meio Atividade Paranormal (2007), esqueça. Nem à luz do dia.
Ela realmente acredita em fantasmas e em espíritos do além, mas não em demônios. Daí o medo — medo do que pode mesmo acontecer.
Eu acredito e não acredito nessas duas coisas, a depender do contexto. Sou um homem de convicções desconvictas. Quando era novinho, pelos 16, 17 anos, um padre tentou me convencer a fazer faculdade de teologia para estudar o tema a sério e quem sabe virar sacerdote.
Até pensei, mas gostava muito de namorar.
E eis que, ao acordar hoje pela manhã, descobri um outro gênero de terror que me horroriza. Nada é tão assustador quanto a política, pensei, do que essa marcha consciente ou inconsciente das pessoas rumo à destruição.
Ouvi ao vivo o discurso da vitória de Trump. Eram cerca de 7h aqui em Portugal. Decepcionado, mas não surpreso, senti um calafrio pior do que quando vimos “Sorria” (2022), aqui em casa, no fim de semana (gostamos do filme, especialmente da primeira metade).
Já ando em clima de horror, escrevendo sobre o Zé do Caixão aqui em O Lento Alento e revendo toda a filmografia do personagem, que aparece em filmes escatológicos, sádicos e assustadores.
Subitamente o pervertido e perturbador Zé parece um reformista utópico diante de Trump, o agente laranja, com sua cara de abóbora de Halloween.
Penso nos meus filmes de terror favoritos, que são cheios de alegorias sobre o mundo em que vivemos. Os vampiros da burguesia, os zumbis da sociedade industrial. Alguns filmes de terror ultrapassam a surpresa do susto e alimentam nossas inquietações em um terreno muito mais enevoado e complexo. Eles convidam (ou forçam) a refletir sobre uma sociedade que preferimos ignorar. Eles Vivem (1988), de John Carpenter, é o exemplo clássico: uma fábula alienígena sobre alienação.
O Bebê de Rosemary (1968) de Polanski, era um dos filmes de terror favoritos de José Mojica Marins, o criador do Zé do Caixão. Ele coloca o diabo no coração de Nova York, tão ordinário quanto qualquer um de nós, e expõe a violência invisível (mas não sutil) contra as mulheres e seus corpos subordinados, expostos ao domínio e ao abuso. Em uma das muitas cenas de horror, digamos, político do filme, Rosemary (Mia Farrow) procura um médico para falar sobre a sua gravidez, mas ele não quer conversar com ela. Manda chamar o marido.
O marido de Rosemary, por sua vez, quer tanto vencer na vida que… tudo bem vender o corpo, e a alma, da esposa ao diabo.
Não é o que a gente é ensinado a fazer desde pequenos? O sucesso a qualquer preço?
Um dos meus favoritos de todos no gênero é o chocante O Massacre da Serra Elétrica (1974), dirigido por Tobe Hooper. Nele o comentário social talvez esteja menos aparente, mas não invisível: revela-se na violência latente de uma sociedade que devora seus próprios filhos. Em um cenário do interior redneck norte-americano, marcado pela pobreza e pelo abandono, a trama segue um grupo de jovens que cruza o caminho de uma família de canibais. Mas Leatherface, com sua serra e máscara de pele humana, é mais que um monstro: é um produto do desespero econômico, de uma terra explorada e esquecida.
Esse cenário, com suas fazendas desoladas e carne exposta no açougue da loucura, reflete o custo brutal da era industrial. Nos anos 1970, em um Estados Unidos devastado pela crise de petróleo e pela desvalorização do trabalho rural, o filme se tornou um retrato perturbador de uma sociedade onde a vida humana passa a valer tão pouco quanto os restos de um matadouro. E, como a filósofa Julia Kristeva aponta em seu conceito de abjeção, o horror surge do que mais repelimos e tememos – aqui, a proximidade entre o humano e o animal, entre a carne e a violência primal.
Curiosamente, ou não, Hooper diz que se tornou vegetariano depois de gravar O Massacre da Serra Elétrica.
Quando minha esposa e eu assistimos Speak No Evil (o original, de 2022), o desconforto nos acompanhou por dias. Era o horror psicológico que se infiltrava lentamente em nós, apenas esperando que a gente baixasse a guarda. Mas era também um comentário político agudo. O que acontece quando toda a nossa gentileza, toda a nossa cordialidade e civilidade encontram um monstro? É uma boa ilustração do agora famoso paradoxo da tolerância, que alerta: aquele que tolera o intolerante será por ele destruído. Será isso o que tem acontecido com as esquerdas mundo afora, ante a ascensão fascista? Se for, atenção. O final do filme não inspira absolutamente nenhum vestígio, nenhum resíduo de esperança.
Kristeva descreve o abjeto como aquilo que assombra nossa ordem e desafia nossas identidades – o estranho, o rejeitado, aquilo que preferimos ignorar. No cinema, o abjeto surge em tudo que transborda o aceitável: uma criatura nascida do lixo em O Hospedeiro (2006) ou o controle sobre o corpo feminino em O Bebê de Rosemary.
Esses filmes nos confrontam com o que está sempre à espreita, esperando.
Ao explorar o abjeto, o horror se torna uma janela para nossas fragilidades e para o que a sociedade deixa em suas margens. Vemos na tela, ainda que num piscar de olhos, a monstruosidade da exclusão, da violência, da alienação, e somos obrigados a confrontá-las, mesmo sabendo que nossa inquietação, provavelmente, nunca irá se dissipar.
O terror é político, e, na Era Trump, a política é o terror. Os filmes ensinam que o monstro rejeitado não desaparece — assim como o fascismo, persiste nas margens, esperando o momento de atacar. Em tempos de discursos violentos, excludentes e nacionalistas, o abjeto surge como o outro – imigrantes, minorias, pessoas marginalizadas – figuras que encarnam o medo do colapso das fronteiras entre o puro e o impuro, entre nós e eles.
Trump e outras figuras da extrema direita sabem explorar o medo.
São os verdadeiros mestres do terror.
o horror, o horror