O meme é uma carta de amor
Na era dos descarregos instantâneos de afeto, para bem e para mal, uma simples imagem de um gatinho pode ser um alento
Viva!
Nesta semana eu estava lendo com os meus alunos de cibercultura um texto do filósofo sul-coreano Byung Chul-Han, que se tornou conhecido nos últimos anos por seus ensaios sobre temas contemporâneos como a depressão, a exaustão, a dificuldade de estabelecer relacionamentos significativos, a crise da democracia, a crise do capitalismo, entre outros.
Estou ciente das críticas que se fazem ao trabalho dele, e concordo sobretudo com uma: é um discurso essencialmente eurocêntrico, que faz crer que o mundo compartilha dos mesmos desafios e dilemas da Europa ocidental (Han é radicado na Alemanha há décadas).
No entanto, gosto das provocações que ele faz no livrinho No Enxame - Perspectivas do Digital, cuja visão apocalíptica sobre a internet e as redes sociais eu compartilho em grande parte.
Há um trecho do breve ensaio intitulado Sem Respeito que disparou uma boa reflexão na turma. Como esse é o principal intuito deste Lento Alento, ou seja, espoletar reflexões e tornar a vida mais interessante, menos idiotizada pelo piloto automático da algoritmosfera (nome de um livro da Camila Leporace, com quem tive o prazer de dividir uma mesa sobre Inteligência Artificial em evento da UERJ) que envolve e sufoca, decidi que valeria a pena compartilhar a conversa.
Em certo momento do seu ensaio, Han diz que a mídia digital é uma mídia de afetos, muito mais propensa a carregar esse tipo de energia do que, por exemplo, as velhas cartas escritas à mão ou datilografadas. Os alunos resistiram à afirmação. Antes mesmo de assimilar o que estava em jogo, pipocaram as expressões de indignação.
— Não é possível! Eu discordo!
Isso me lembrou uma aula de Ética que eu ministrei há muitos anos, quando ainda morava em São Paulo. Na época eu falava sobre o imperativo categórico e lia com os alunos um trecho de um texto de Immanuel Kant (Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?). Não se passaram nem cinco minutos antes de um aluno meio distraído protestar: — Professor, eu discordo do Kant! Achei aquilo tão inusitado que virou para mim uma dessas piadas que nos protegem do ridículo.
Um alerta contra o não vi e não gostei filosófico.
Calma lá, calma lá, vamos entender e depois nos manifestar.
Em suma o que Han afirma é que a mídia digital é uma mídia de descarga de afetos, ou seja, uma permanente sessão de descarrego, aberta 24 horas por dia, acessível à ponta dos dedos. A facilidade estimula a rapidez (a relação com a temporalidade é fundamental, aqui), que por sua vez incentiva a irreflexão, a precipitação, a imprudência.
Ora, é exatamente o que acontece em uma discusão mais ou menos acalorada, em que alguém subitamente…
— Eu discordo!
A questão não é sobre ter razão ou não, mas sim observar como essa mesma dinâmica de descarga é estimulada pelas nossas redes sociais favoritas, Twitter, Facebook, Instagram etc. Uma dinâmica de boteco. Com tudo o que vem de bom (adoro boteco) e de mau.
O Umberto Eco até faz essa comparação, em outro texto. A internet dá voz ao idiota da aldeia, ele diz, ao bêbado do bar. Aquele sujeito inofensivo, até folclórico, que vive falando disparates, hoje se aglutina a legiões de outros idiotas e deixa de ser inofensivo.
A conclusão polêmica de Han é: um post em rede social carrega mais afeto do que uma longa, perfumada e açucarada carta de amor.
Mas como isso é possível? Imaginei a seguinte situação.
Amados alunos, a tarefa de hoje é que escrevam, à mão, uma carta que expresse a vossa discordância nesse ponto. Não uma redação, uma carta. Encontrem papel e caneta, escrevam, dobrem o papel direitinho, vão a uma papelaria, procurem um envelope adequado, apontem nele os dados do destinatário da carta, vão ao correio (claro, no exíguo horário de funcionamento do correio!), entrem na fila, comprem os selos necessários, paguem tudo, de preferência com moedinhas na quantia exata, despachem a carta, voltem para casa e esperem o envelope chegar a mim, com o seu protesto, que lerei com muito interesse, antes de responder também por carta, em algumas semanas.
Não se trata de sarcasmo, mas de uma ilustração exautiva do tempo, e do esforço, necessários em uma mídia analógica, ante as condições que encontramos hoje, nas mídias digitais.
A mídia digital é um mídia de afetos: tudo o que nos afeta, instantaneamente, podemos despejar no teclado, também instantaneamente.
Odeio esse cara idiota, achei essa ideia estúpida, que mulher linda, que delícia, que nojo, que gatinho fofo.
O afeto da afetação
A mídia digital é uma arena de afetos, ou melhor, de afetações, imediatos. Tudo o que nos atravessa — uma irritação súbita, uma alegria fugaz ou aquele encanto inesperado — encontra vazão. O impulso é capturado e lançado na vastidão da rede, como um grito.
Um grito que, nos tempos analógicos, poderia se dissipar no vazio, se não tivesse maior significado. Hoje, ecoa, ecoa, ecoa, estimula novos gritos.
O barulho das redes é incessante. As redes são, também, um fenômeno acústico. Por isso são tão estressantes (e por isso tenho me dedicado quase que somente a este Substack, em termos de redes sociais).
O tempo, que antes era o filtro, agora é a gasolina.
Na era do espetáculo, queremos todos ver o circo pegar fogo. Ou não?
Difícil resistir a esses impulsos, navegar contra a corrente. Mas navegar é preciso, mais do que nunca, mais contracorrente do que nunca, diante de tantas crises que se acumulam no horizonte do hoje-mesmo.
Há algo de fascinante e aterrador nessa dinâmica. Uma catarse que liberta e escraviza. Somos reféns de impulsos que antes se dissolviam no ar?
Da carta de amor ao meme com gatinhos
Eu sempre gostei de escrever cartas de amor. Não há como dizer que as cartas de amor não carregam afeto, não são uma mídia sentimental. Cartas de amor (ou mesmo longos e-mails, no novo século) me pareciam a coisa mais natural do mundo, a melhor forma de expressar emoções intensas e profundas.
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