O brasileiro que viaja deixa de ser brasileiro
Maior dramaturgo do país, Nelson Rodrigues tinha opiniões fortes sobre o ato de viajar — para ele, "a mais burra das experiências humanas"
Viva!
Dias atrás, quando falei sobre a vida de Nelson Rodrigues, no artigo semanal longo de O Lento Alento, incluí no finalzinho do texto uma curiosidade: Nelson odiava viajar. Dizia, peremptório: viajar é a mais burra das experiências humanas.
Debochado, repetia que, ao passar do Méier, no Rio, já “sentia saudades do Brasil”.
Um dia, o amigo Carlos Heitor Cony avisou Nelson de que faria uma viagem à Europa. A resposta do Anjo Pornográfico foi, segundo o próprio, desesperada:
— Não faça isso. O brasileiro não deve viajar nunca. O europeu pode viajar, porque continuará europeu. Um inglês será eternamente inglês, no céu ou no inferno. Já o brasileiro pode deixar de ser brasileiro.
Cony achou a resposta absurda. Interpelou: Mas quem é que deixou de ser brasileiro depois de viajar?
Nelson tinha a resposta na ponta da língua. Um amigo dele, Cláudio Mello e Souza, após passar 48 horas em Roma, retornou ao Brasil “transformado”.
A experiência na milenar Itália havia despertado em Cláudio uma nova percepção do tempo e da paisagem.
Em Roma, o Cláudio saía de um espanto para outro espanto. Lá, descobriu o tempo. O Tempo, o Tempo! No Brasil não há tempo. Temos quinze minutos de História. Ao passo que, na Itália, um pires, uma xícara, uma pia, uma bica, têm mil anos. O quadril de uma menina é de uma graça milenar e terrível.
Nas escassas 48 horas de Roma, o Cláudio deixou de ser brasileiro. E aí está dito tudo. O pior estrangeiro é o brasileiro que vem de fora, vem de outro idioma, vem de outra geografia. Daqui partira um maravilhoso ser recente, sem nenhuma História. E o que voltava era um Cláudio saturado de mil anos.
Ao retornar, Cláudio era estrangeiro em sua própria terra, incapaz de se conectar à paisagem familiar do Pão de Açúcar e da Baía de Guanabara. A imersão de 48 horas o alienara de suas raízes brasileiras.
Nelson, o exagerado, via nas viagens ao exterior um risco à integridade da identidade nacional. Temia que os brasileiros absorvessem valores e costumes estrangeiros, o que não acontecia, por outro lado, com um europeu. O brasileiro, tipo inseguro, vira-lata, se vê como inferior às culturas europeias e logo quer imitá-las.
O tema me fez lembrar desta crônica de 2014, escrita quando eu acabara de voltar de uma viagem a Portugal (onde hoje, coincidentemente, eu moro).
A opinião de Nelson me parece absurda e feita para chocar a plateia, bem ao modo dele. No entanto, tem algo de verdade em ao menos uma coisa: a gente, quando viaja, acaba se tornando estrangeiro até de nós mesmos. Que bom.
Saber que não sabemos muita coisa é sempre o primeiro passo rumo à descoberta.
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