Natal sem nóia
Eu amo o Natal, mas o meu Natal, cheio de singeleza e gratuidade: abraço de criança e cachorro girando ao redor da árvore
A eletricidade no ar, a pressa, a angústia não me deixam enganar.
Os shoppings lotados, as vitrines apinhadas, as lojas transbordantes não me deixam enganar.
As luzes piscantes, o vermelho, o verde, o dourado, o trânsito recorde não me deixam enganar.
As filas, as etiquetas de preço, os envelopes de mala direta não me deixam enganar.
Um velho postiço, de barba e barriga postiças, em trajes glaciais sorri e acena em meio ao próprio derretimento. Em São Paulo, 33 graus.
É Natal.
As amigas psicanalistas informam que nesta época os consultórios ficam cheios. Atendem todo o tipo de gente: adolescentes, adultos, velhos; negros, brancos, amarelos; ricos, pobres, remediados; solteiros, casados. A angústia é comum, democrática e universal. É Natal.
A crise natalina se espalha como poeira, silenciosamente a princípio, antes dos primeiros acordes de Então É Natal. As famílias vivem distantes, ou encolhidas, enrugadas. A maior expectativa de vida entre nós não resultou em natais mais animados, multigeracionais. Estamos separados pelo trabalho, pela pressa, pela distância, pelo cansaço.
E ainda ter de cozinhar uma ceia inteira.
Quando eu era adolescente, achava curioso o hábito de um vizinho meu, que viajava todo Natal. Era estranho porque sua viagem não era um encontro, a busca pelo ninho perdido. Sua viagem era sempre uma fuga, um desencontro. Viajava para longe em pleno Natal; para qualquer lugar. Se possível, atravessava a data nas nuvens, a 10 mil metros de altitude.
Nunca me atrevi a perguntar o porquê daquele ritual às avessas, daquela fuga que se sedimentava ano a ano. No afã de fugir das cerimônias do Natal e Réveillon, criara uma cerimônia complexa, que envolvia longos períodos de poupança, planejamento logístico, reservas antecipadas.
Hoje entendo melhor o velho Jair e seu ritual. Figura pacata, tristonha, baixinho e atarracado. Era como se o próprio corpo estivesse voltado para dentro, para si, para fugir aos assuntos do mundo. Tinha olhos pequenos, penetrantes, e cabelos negros, da ascendência árabe. Aos cinquenta anos de idade, moravam só Jair e a mãe, que não viajava junto com ele.
Nunca soube como ela passava o Natal – talvez com parentes no interior. Mas entendi, tardiamente, a urgência de fuga de seu Jair. Sua sensação de deslocamento perpétuo, que se acirrava na época dos falsos Papais Noéis oferecendo falsos abraços e doces embalados a vácuo. Oferecendo um Natal ultraprocessado e embalado a vácuo.
Não sei se de lá para cá as sensações e festejos de fim de ano pioraram ou se sempre foram algo assim, industrializadas. O verme da nostalgia, que corrói silenciosamente, me impele sempre a crer que os Anos Dourados passaram.
Será?
Pela janela vejo todos correrem como bichos estressados. O ano vai acabar logo ali. Subitamente percebem que têm apenas duas semanas para resolver todas as suas pendências. Alguns quererão fazer um filho, outros, escrever um livro, outros ainda, esculpir um corpo televisionável.
Eu tento me distrair de todas as coisas que não fiz – e não farei, certamente, antes do 31 de dezembro.
Ligo o rádio.
Uma ouvinte angustiada pede a um consultor financeiro que a ajude a administrar as compras de Natal. Fez as contas e previu um gasto de três mil reais, somando presentes aos amigos “VIPs”, aos “queridos” e à gente que ganhará “lembrancinha”. Multiplicou e somou as despesas. Desesperou-se. Nem com todo o décimo-terceiro salário poderia pagar.
Esqueceu, coitada, que Natal não é tempo de fazer ou de prestar contas; de somar ou de multiplicar fatores.
Bom mesmo era dividir.
E a solução, José? E agora, o que fazer? A solução, minha amiga? Nenhuma. Há problemas que não têm solução — no Natal, no Réveillon e na vida.
Apenas aceita-se, a seu tempo, a sua extensão.
[Eu amo o Natal, mas o meu Natal, cheio de singeleza e gratuidade: abraço de criança e cachorro girando ao redor da árvore. Feliz Natal!]