Não existe amor em APP
Todas as cartas de amor são ridículas, ensinou o poeta; mas o Tinder não tem nenhuma poesia — não chega a ser, portanto, nem ao menos ridículo
Depois de muito falar sobre horror (Trump, Zé do Caixão), decidi nesta semana dar a meia-volta para falar de amor.
Talvez não seja bem uma volta de 180 graus, talvez seja mais uma paralela ou um desvio-ao-desvelo. Uma tangente: o amor às vezes pode chegar perto do terror, com seus bichinhos no estômago e na garganta, seu medo paralisante, e o terrível, odioso monstro do ciúmes.
Aliás, como cantou Alceu Valença:
Tanta gente canta, tanta gente cala
Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme
Pensando sobre o tema, lembrei desta crônica que escrevi e publiquei no Estadão já há mais de dez anos, em 2013.
Na época o Tinder ainda era uma grande novidade, e a gente olhava aquilo entre a excitação e a desconfiança. Já começavam a chegar os estranhos relatos de uma mudança na forma de nos relacionarmos. Dava vergonha dizer, sobre uma nova parceira ou parceiro, que havíamos conhecido a pessoa pelo aplicativo.
Parecia promíscuo e, principalmente, desesperado.
Corta para 2024 e o problema não é mais esse, mas sim o desencanto e a saturação. Não aconteceu, como os mais otimistas esperavam, uma humanização do Tinder. Aconteceu, ao contrário, uma tinderização do humano.
Seu ícone é uma chama estilizada, mas fria ao toque.
Um fogo que não queima.
O ciúme, antigo terror do amor, vai saindo de moda, eu espero.
Agora o terror é não conseguir estabelecer relações íntimas, em que prazer e parceria deem as mãos.
Ainda acho o texto atual. Você também acha?
Não existe amor em APP
O amor é um jogo. O amor é um jogo de avanços e recuos. É uma dança lenta, em que se avança um passo para a frente, dois para o lado, meio para trás. E recomeça. E assim vai.
O amor vem e vai. Um telefonema, uma semana de geladeira, flores, um toque de mãos, três dias de expectativa e, de repente, o primeiro beijo na saída do bar. O amor é cego, o amor é surdo, o amor é chato; o amor é para quem sabe amar. Pássaro inquebrantável mas arredio, assusta-se com um espirro, com um segundo de silêncio, com um olhar na direção errada. Meias palavras e bate asas.
Ele vem.
Ele passa.
(Não passa, aquieta.)
O amor é tão complexo que não se esgota em nenhuma canção, em nenhum clássico, em nenhuma palavra. O amor não cabe em lugar algum: num soneto de Shakespeare não cabe. Numa sinfonia não cabe. Nem no coração o amor, se é amor, cabe.
O amor é um jogo desde sempre jogado. Jogo como o xadrez, como o gamão. Que digam: pôquer. Blefado. Mas hoje, feito o xadrez, o gamão e o pôquer, aquele amor cheio de regras e de movimentos complicados está escanteado. Não é prático.
O amor, hoje, precisa atender com hora marcada. Se vier com um alarme de proximidade, tanto melhor. Programado com GPS, algoritmos e alertas sofisticados.
O amor vibra no seu bolso quando chega a hora de ser amado.
O amor é objeto de softwares variados. Paixão e sexo são vendidos no mesmo pacote, como uma ilusão de amor, o amor como bilhete premiado. O tíquete dourado do Tinder, o aplicativo de encontros da atualidade. Quem sabe ali, escondido entre milhares de rostos retocados?
Aprisionaram o amor no Tinder e que tais. Naquela profusão de rostos sedutores ele estaria à nossa espera, sorridente, convidativo, devidamente embalado.
Mas prometeram-me o amor e não encontrei nada. Não havia amor algum. Nem, para ser sincero, paixão. Nem sexo. Havia apenas um deserto, como num jogo de espelhos circenses. Espelhos multiplicando muitas faces que no fim pertenciam à mesma criatura: um avatar desencarnado.
Rapidamente me habituei ao ritmo do aplicativo: em menos de um segundo indicava quem eu queria, quem eu não queria, como num supermercado. Menos de um segundo. Pensei nas namoradas que tive, pensei no meu amor. Estivessem ali, naquela lista bizarra de compras, eu diria que sim, hoje eu quero um quilo disto, três daquilo? Eu diria que não?
Uma foto errada, luz inadequada; uma piscada na hora decisiva e adeus. Talvez o polegar fosse mais rápido que os olhos – que são mais rápidos que o coração. E: não. O amor se perderia. Assim, pelo Tinder, eu teria deixado passar algumas das melhores (e piores) experiências da minha vida.
O Tinder é o amor nos tempos do videogame, da realidade virtual, dos prêmios e troféus ao passar de fase. Muito além do velho flerte esportivo, é a evolução de um colecionismo falastrão anterior à internet. Democratiza o sedutor de quinta categoria, multiplica o amante bidimensional. Inventa um amor entre dedos indicadores.
Seu ícone é uma chama estilizada, mas fria ao toque. Um fogo que não queima.
Todas as cartas de amor são ridículas, ensinou o poeta; e o amor, em si, não pode ser menos do que ridículo. Mas o Tinder não tem nenhuma poesia. Não chega a ser, portanto, nem ao menos ridículo. Ao contrário, ele tem muito sentido. É por isso que não pode ser sentido.