Devaneios no café
Levo comigo o caderninho surrado de poemas e começo a registrar ideias a esmo
Viva, queridos leitores e leitoras!
Bastante gente nova por aqui, então queria mais uma vez explicar (rapidamente) como funciona essa newsletter. Eu sou professor universitário há quase 20 anos, na área de Comunicação e Artes, e também estudante de psicanálise. Tenho alguns livros e umas centenas de crônicas e de contos publicados. Mas o meu projeto do coração é este aqui mesmo: O Lento Alento. Um espaço em que escrevo sobre cultura, filosofia e psicanálise e proponho um olhar lírico e reflexivo sobre a vida. Quando puder, dê uma olhada nos meus textos anteriores, para ter ideia da pegada: de Nelson Rodrigues a David Lynch, de Carnaval a vício em telas.
Assinando, você receberá dois textos por semana. Em algum dia útil (como hoje) eu envio um Alento. É um texto curto, com poesia ou humor, um descanso na loucura — que, não por coincidência, era como um famoso personagem do Guimarães Rosa definia o amor. No fim de semana, envio o Lento, um texto de fôlego, que me toma dias, às vezes semanas, para produzir. São reflexões e conexões ligadas ao universo da cultura e da filosofia. Na semana passada, por exemplo, discuti o que é arte, a partir da história de um contador inglês que está tendo sucesso vendendo seus rabiscos infantis com o rótulo de “arte horrível”.
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Agora obrigado, pegue seu cafezinho, e vamos ao Lento da semana!
Olho o café. A xícara.
Flutuo no oceano de dois mundos – à deriva.
Levo comigo o caderninho surrado de poemas e começo a registrar ideias a esmo. Primeiro, a materialidade: mesa de madeira, xícara de porcelana, colher de aço. Aos pouquinhos, chego a territórios menos tangíveis: sorriso amargo, mão cansada, vento de tempestade. Vou criando imagens. Deixo que as mais surradas apareçam primeiro. Olhos de ressaca, dente de porcelana.
Vou me aproximando do devaneio. E dentro das pessoas, o que acontece? Qual a história daquela moça solitária? De onde vem aquele grupo de turistas? Para onde vão?
Como naquela lenda da rainha que tecia e destecia um tapete enquanto esperava o retorno do amado, elaboro na minha cabeça uma rede que conecta todos os pontos do café. Por alguns instantes, tudo está em relação. Uma luz invade o lugar, banhando-nos a todos. Somos todos humanos.
No fundo do salão, o espelho mostra vultos que vêm e vão, ao meu redor.
As pessoas parecem formar um buquê de flores.
A garçonete traz o café com um sorriso bonito.
O que tanto escreve? É poeta? Fala um verso.
O poeta tímido não tem nada na ponta da língua, nem mesmo no caderno. São rabiscos. Balbucio qualquer coisa, sem graça. Poderia mesmo ser contabilista, como o meu pai, e mostrar uma planilha de despesas com parafusos. Ela faz uma careta. “Que pena, você parecia tão inspirado!”. Enrubesço.
Deixa-me com a xícara fumegante e a vergonha.
O intervalo já vai acabar. Bebo de um gole o animal morno. Um microgrão partido repousa no fundo da xícara, solitário.
Meus pés tortos apontam dois rumos: o universo selvagem dos grãos moídos, dos professores cansados, e o mundo das ruas e bares, estações de trem e parques. Relações complexas, borboletas na China. O mundo das ondas e das multidões, não das partículas.
Sete octilhões de átomos reunem-se de forma singular para constituir um único corpo humano. Um octilhão é um número com 27 zeros à direita.
Eu devia ter dito isso à garçonete.
Como viver como uma massa compacta, firme nas ideias, certeiro nos propósitos, quando sete octilhões de ideias pululam em nós?
Vou e volto nos pensamentos em trinta minutos de café. A conta chega e não cheguei a conclusão alguma. Não sei mais o que é madeira e o que é vento.
Mesmo tão tumultuado, o mundo dos átomos deve ser solitário, penso, enquanto procuro dinheiro na carteira. Solitário como esta nota passando de mão em mão.
O quê?
Ela sorri confusa enquanto retira a louça. Interrompo sem pensar para colher o grão no fundo da xícara. Guardo-o, envergonhado do meu atrevimento. Ela olha meio em choque. Tenho vontade de falar octilhões de coisas. Tenho vontade de perguntar qualquer coisa àqueles turistas (argentinos? espanhóis?). Tenho vontade de pedir outro café e nele esconder minha cara vermelha — e o grão que restou.
Ao pé do caixa, sorrio. Um espelho é mesmo a coisa mais besta. Queria pagar em filosofia, em frações de octilhões de átomos dançarinos.
O senhor de poucas palavras me olha desconfiado, como se eu fosse capaz de sair correndo, como se fosse ousar um calote — ou um verso.
Só aceita dinheiro em espécie.
Se você leu até aqui, meu especial obrigado!
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Inspirador, em um mundo repleto de muros. Voar sem precisar de asas nem explicações. Muito belo!
Devaneios de um cavalheiro solitário ou incrivelmente romântico ou poeticamente realista… lindo!