As pessoas e os parafusos: memórias de um chefe cruel
Meu antigo patrão, que se achava um grande líder, dizia coisas como "gente é para apertar que nem parafuso — e depois substituir"
Viva!
A discussão sobre a escala de trabalho 6 x 1, que massacra milhões de brasileiros, com seis dias de labuta para cada dia de folga, me fez lembrar de uma antiga lição etimológica.
A palavra trabalho vem do tripalium, uma ferramenta medieval de ferro, destinada a imobilizar e dominar animais, e que mais tarde virou instrumento de tortura, durante a Inquisição.
Se é verdade que viver é sofrer, como disse Buda, trabalhar é ser subjugado e cruelmente torturado.
Pesado? Muito. Mas também é pesado trabalhar incessantemente, em ritmo exaustivo, para apenas descobrir, ao fim do mês, que não se consegue nem mesmo pagar as contas da própria subsistência.
Como a gente muda isso? Como o trabalho poderia virar criação e crescimento, algo com significado para nós, seres humanos?
Precisamos de um outro mundo, antes que este se acabe. Esse é o grande trabalho do nosso tempo, cheio de sentido e esperança.
(Enquanto isso, um dia a mais de não-trabalho já ajuda.)
Meus tempos de jornal diário eram muito parecidos com a escala 6 x 1, sem direito a feriados e com plantões frequentes de fim de semana e jornadas diárias de 12 horas, em média. Foi nessa época que conheci Tião. Figura implacável, brutal, que fazia do cotidiano uma arena de tortura psicológica. Um verdadeiro tripalium.
A crônica de hoje relembra esses tempos e o meu antigo chefe tirânico, uma figura saída do século 12, quando o verbo trabalhar começou a surgir entre nós.
Em uma de minhas primeiras experiências profissionais na vida, conheci, digamos assim, o Tião.
Tratava-se de um tipo grosseiro e mal humorado, que aparentava ter uma ou duas décadas a mais do que tinha. Mal chegado aos quarenta, trazia no rosto, e nos gestos, as marcas de cinquenta anos de profundo amargor.
Conhecer, alias, é modo de dizer. Eu nunca conheci o Tião. Tião era o meu chefe.
E que chefe. Era uma figura tosca e desproporcionalmente arrogante, dada a sua inteligência — em especial, a emocional. Pensando melhor, era até compreensível que fosse arrogante. Demorei anos, e incontáveis encontros, para perceber que os mais humildes à minha volta eram geralmente os mais brilhantes.
Demorei para perceber que aqueles que já não tentavam provar nada, aqueles cujas marés já repousavam silenciosamente, sem alarde, na penumbra estrelada, eram aqueles capazes de afogar com uma só palavra.
Tião, ao contrário, era homem de marés sempre revoltas.
Orgulhava-se de sua elevada capacidade de liderança. Confundia respeito por autoridade, trocava carisma por medo. Desenvolvera um método de gestão peculiar cuja máxima era uma lágrima por dia.
Ou, nos seus termos, cada dia, um esculacho.
E como éramos esculachados. Em certo momento do trabalho, nós, os peões, elaboramos uma escala funesta segundo a qual ninguém poderia ser espinafrado mais do que uma vez por semana.
Para cumprir a escala, bastava violar um dos artigos da Lei de Talião, digo, de Tião. Atrasar-se alguns minutos, usar roupa inadequada, não atender a uma ligação sua, errar uma crase (tinha especial predileção por crases), ou até mesmo lançar um olhar perdido, difuso, para qualquer lado, por mais de dez segundos. Perda de tempo! Tá de bobeira, é? Era o suficiente, especialmente para as meninas, pois Tião era, além de tudo, misógino. Nós, os rapazes, tínhamos de nos esforçar um pouco mais para merecer o dia do esculacho.
Errávamos, num mesmo texto, duas crases.
De fora, os colegas assistiam àquilo entre o espanto e o divertimento. Alguns, solidários, entre uma cerveja e outra no balcão das lamentações, consolavam: mas pense no lado positivo.
1) Você pode aprender muito com ele, é bom ter um chefe rigoroso;
2) Ele não vai durar para sempre;
3) É só trabalho.
Mas o rigor jamais se confunde com a brutalidade. Não tardou para que detectássemos infiltrações naquelas tábuas de salvação. Nosso aprendizado diário corria largamente no campo do cinismo, do pânico, da depressão, da angústia e, eventualmente, da crase.
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